Arquivo da tag: Jesus

Boa Páscoa, salve Kardec e ditadura nunca mais!

WhatsApp Image 2024-03-31 at 1.50.06 PM

Imagem de Jesus feita pela Inteligência Artificial, a partir do Sudário.

Por uma coincidência significativa, hoje, 31 de março de 2024, se encontram três datas. A comemoração da Páscoa cristã, os 155 anos da morte de Kardec e os 60 anos do Golpe militar no Brasil.

Podemos tecer alguma intersecção entre esses fatos? 

Acredito que sim. A Páscoa começa com a ceia final de despedida de Jesus com os amigos na quinta, passando pelo julgamento sumário, num conluio entre fariseus e romanos, seguido de tortura e bárbara execução na cruz e, no terceiro dia, sua aparição aos discípulos. Para os espíritas, não foi uma ressurreição do corpo, mas a materialização do Espírito, como prova da sua imortalidade.

Para muitos cristãos hoje, do campo progressista, tanto católicos, como protestantes e espíritas kardecistas, entende-se essa morte, muito mais do que seu simbolismo religioso de resgate dos pecados humanos pelo sangue de Jesus, como a perseguição a alguém que estava ao lado dos pobres, dos oprimidos, que representava uma ameaça ao poderio romano e judaico, pelo anúncio de um Reino de justiça, igualdade e fraternidade. 

Essa visão de entender Jesus por seu lado ético, de exemplo para a humanidade, de anúncio de um projeto do Reino, e não como um salvador, foi feita por Kardec, no século XIX, seguindo a tradição iluminista, que propunha religião como moralidade e não como instituição dogmática e hierarquizada. 

Ora, a visão do Cristo nessa perspectiva, que é a visão de uma teologia da Libertação, de um Herculano Pires no seu livro O Reino, que enfatiza sua postura humanista, acolhedora das dores humanas, de que participou, e propositiva de novas relações igualitárias e fraternas, contrasta radicalmente com todo o discurso da extrema direita, essa que prega ditaduras, torturas, opressões e morte – muitas vezes em nome do próprio Jesus.

E é de uma ditadura dessas que nos lembramos hoje contritos, tristes e indignados, promovida no Brasil por militares, empresários, elites, todos apoiados pelo império dos EUA. E é de uma ditadura dessas que nos livramos no dia 8 de janeiro de 23, por muita sorte, por algumas resistências, e também porque naquele momento, os EUA não tinham interesse político nisso e alguns de seus representantes mandaram recado que não iriam apoiar. 

Essa ditadura que o inominável, inelegível e futuro habitante da Papuda, louvou sempre na pessoa do abominável Ustra, que torturava mulheres grávidas e que o dito cujo mencionou elogiosamente no impeachment da Dilma – um golpe também, e esse muito bem apoiado pelos norte-americanos. Se nesse dia, como exigia a Lei, esse homem tivesse sido caçado e preso, por apologia à tortura, teríamos economizado muitas dores e lágrimas nos últimos anos. 

Nesses 60 anos de memória inapagável do Golpe de 64, o governo Lula impediu oficialmente as comemorações favoráveis a esse lamentável evento histórico – e fez muito bem – mas também recomendou um incômodo e inadmissível silêncio em atos oficiais para relembrar mortos políticos, muitos até hoje sem sepultamento, e todas as tragédias provocadas por uma violência brutal, principalmente nos chamados “anos de chumbo”. 

Infelizmente, voltando a Kardec, muitos espíritas, como de resto muitos católicos e protestantes, apoiaram tanto a ditadura de 1964, como a quase instalação de um golpe em 2023. Conservadores, defensores de violências políticas, em completa incoerência com o Mestre a quem pretendem seguir, estão presentes em todas as dominações. No caso dos espíritas, não estão apenas contrariando Jesus, que consideram também seu mestre, mas o próprio Kardec, que defendia a liberdade de pensamento, a fraternidade universal e a não violência.

De incoerência a traição dos princípios essenciais das grandes tradições espirituais é que são feitos também esses momentos tenebrosos de sufocamento da liberdade e da justiça e por isso mesmo não podemos esquecer a história, sempre uma grande mestra. Ditadura, nunca mais!


Diário da mama 3 – Desafios

Tintoretto-jacopo-Comin-Portrait-of-a-Woman-Revealing-Her-Breasts-2-

Com todos os exames nas mãos, estive colhendo a opinião de dois médicos, um médico do Einstein e a chefe da mastologia da AC Camargo. Acompanhada de primos, meus queridos Ana e Fábio, minhas amigas-irmãs, as duas Claudias (Gelernter e Mota), e meu pai, senti-me cercada por um séquito de amor e sustentação.

A notícia que me aliviou é que não terei de tirar a mama, mas apenas um quadrante. As notícias que me pesaram são as que já se sabe, mas que quando se anunciam, sempre assombram: a cirurgia, o dreno, a longa químio, com todos os seus horrores.

Apesar de todo mundo achar uma maravilha a medicina de hoje, com seus avanços tecnológicos, eu – que já quis ser médica na primeira juventude e desisti porque não queria o horror de dissecar cadáveres – euzinha acho a medicina ainda uma barbárie. Uma medicina que tira pedaços, que serra o tórax, que usa pinos e ruelas, que para curar algo provoca mil efeitos colaterais…Uma medicina enfim que vê o corpo como um mecanismo material apenas, sem conhecer suas conexões com o espírito, sem adentrar seus aspectos energéticos! Mas é o que temos para hoje. E claro que, desde o tempo das sangrias e dos purgantes, evoluiu muitíssimo. E temos que recorrer a ela com confiança, porque nesse meu caso, ela cura.

Pelo menos, o hospital em que decidi fazer o tratamento, AC Camargo, tem algumas coisas que me agradam muito: equipes multidisciplinares e humanismo.

No dia seguinte à consulta, passei angustiada. A perspectiva dos próximos meses, as idas e vindas entre São Paulo e Bragança, com a cirurgia, as químios, a rádio, tudo isso de repente se agigantou em meu peito, como uma aluvião de medos. Não duvido de que ficarei curada desse câncer. Mas o processo de cura é doloroso e longo para o meu gosto. Pode ser que depois de tudo ter passado, as coisas me parecerão ter sido rápidas.

Procurei pelos recursos de sempre: falei com pessoas queridas, que me confortaram e me apoiaram, fiz uma consulta com a endócrino que me trata há anos da diabete e que já teve um câncer de mama – e ela me deu bons e úteis conselhos – orei, recebi visitas espirituais e fiz poesia. E o coração se desanuviou. Enfrentemos o que virá e… encaremos um dia de cada vez – a frase que mais tenho escutado desde o anúncio do câncer, ou como dizia Jesus, a cada dia seus cuidados.

Durante a oração da noite, entrei em conexão profunda com Jesus e senti uma paz doce e infinita. É uma presença real, que nos conforta e acalenta. Ele também experimentou o que é viver, sofrer e morrer nesse corpo que carregamos na Terra e compreende as nossas fragilidades. E prometeu estar conosco até o final dos tempos.

Depois de um dia ruim, brotou um poema de profunda paz:

 

Ao Espírito do Mestre

 

Não sou digna que entres em minha casa…

Mas aqui estás, bem assim,

Trazendo no colo um jasmim,

Olhando-me com olhos de amor sem fim…

 

Estás aqui, ombro a ombro,

Desfazendo todo assombro

Das dores no coração…

Tudo se torna mais leve

Tal como pena breve

Que em nossa alma já inscreve

A trilha de nossa ascensão.

 

Não mais a sombra da noite

Mas a luz do pleno dia

Não mais o íntimo açoite,

Mas a perfeita alegria.

 

E mesmo se a noite escura

Se faz em certa jornada,

Teus olhos, estrelas puras

Nos conduzem pela estrada.

 

Ah mestre, irmão dos séculos

Que prometeste estar

Ao nosso lado no mundo,

Que amor teu, tão profundo,

Para sempre peregrinar

No meio de nossas dores,

Descendo de todo altar!

 

Quero apenas segurar

Nas mãos serenas da alma

Esse momento perfeito

De inteiro silêncio e calma

Em que me achego em teu peito

Em que em ti tenho meu lar!


O Jesus de todos e de todas na Páscoa!

mi_6483053528144319

Este homem que dividiu a história do Ocidente entre antes e depois dele, tem as mais diversas representações por diferentes grupos de crença e abordagens históricas e filosóficas. Para católicos, protestantes, ortodoxos gregos ou russos, ele é Deus que se fez homem e habitou entre nós, para nos livrar do pecado e trazer a ressurreição e a vida. Para muçulmanos, ele é um grande profeta, ao lado de Moisés e Maomé, e sua mãe Maria tem um capítulo dedicado a ela no Alcorão. Para judeus, poderia ter sido um profeta incorporado na Bíblia judaica, mas como se tornou um ser divinizado e, portanto, uma pessoa da Trindade, não poderia ser aceito por uma tradição espiritual (assim como o islamismo) que sequer representa pictoricamente o ser humano e muito menos Deus… Para judeus e muçulmanos, a ideia da Trindade (pai, filho e Espírito Santo, três pessoas num único ser) beira o politeísmo. 

Para espíritas kardecistas, cuja definição de Deus é a de um Ser cósmico, que rege os mundos infinitos, muitos dos quais habitados, sendo o universo uma vasta morada de humanidades; um Deus transcendente e imanente, legislador e mantenedor de todas as coisas, é impensável sua encarnação humana. Portanto, trata-se de um Espírito puro, iluminado, perfeito, mas criatura de Deus, como todos nós. 

Nada impede que um hindu, como Gandhi ou Tagore faziam, ou um budista, considerem-no um ser que atingiu a iluminação.

Anarquistas, socialistas, comunistas podem vê-lo como um revolucionário político, alguém que se opôs aos poderosos da época, colocando-se ao lado dos fracos e dos vulneráveis e por isso teve sua vida arrancada muito cedo, depois de ter sido condenado e torturado.

E é possível ainda que conversemos com essas diversas concepções: para mim, Jesus é um profeta sim, iluminado, que atingiu a perfeição possível que conhecemos, mas claro, também um desestabilizador da ordem estabelecida, crítico das injustiças, indignado com a hipocrisia farisaica, e por isso foi morto por judeus e romanos. E sim, também, em certa medida posso vê-lo como uma manifestação da divindade, porque Deus está em todas as suas criaturas e o processo de ascensão humana é uma gradativa descoberta e realização de Deus em nós. Lembrando a prece de Fernando Pessoa:

“Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.”

Entretanto, como quer que consideremos Jesus, ninguém pode discordar de que seu ensino e seu exemplo foram o “de amar ao próximo como a si mesmo”, o “de perdoar setenta vezes sete”, o “de dar o pão a quem tem fome e visitar o prisioneiro”, o “de buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, o “de servir e não buscar ser servido”, o “de amar aos próprios inimigos” – ideias e práticas de amor incondicional, de justiça, de verdade, de moralidade plena. E por que todos aqueles que dizem segui-lo, que afirmam admirá-lo e prestam cultos para louvá-lo, simplesmente fazem ouvidos moucos para essas diretrizes? No fundo, palavras bonitas, mas utópicas, para fingir que se cumpre, enquanto o ódio, o sadismo, a injustiça e a banalidade do mal andam às soltas no planeta e fazem morada no Brasil!

Mas a Páscoa é símbolo de esperança. Porque nela, Jesus se demonstrou imortal – do ponto de vista da ressurreição da carne, para os cristãos tradicionais; do ponto de vista espiritual para nós, espíritas; e do ponto de vista histórico, porque depois de 2 mil anos de seu martírio, continua tão vivo como sempre em tantos corações, como uma âncora de conforto e como uma bússola de bondade.

Por isso, boa Páscoa a todos e todas!


Podemos desejar feliz Natal nesse 2020?

covid-jesus

Natal de 2020. Quisera ter braços e presença para abraçar todos os que amo, os amigos próximos e distantes e mesmo os supostos adversários. Pois somos todos humanos, frágeis, nesse barco terrestre, em meio a tempestades, nevoeiros e zonas de incerteza e obscuridade.

Quisera ter voz e escrita com o alcance da consolação e da esperança para todos os que estão adoecidos física ou psiquicamente com a pandemia, com o isolamento, com o empobrecimento, com a perplexidade que nos assola.

Quisera ter colo para oferecer a todas as crianças do mundo, as que estão trancafiadas em casa, as que estão refugiadas, as que estão em fome e necessidades tantas… 

Quisera… quisera… poder anunciar aqui nesse texto notícias alvissareiras: o fim das violências contra qualquer ser humano, contra qualquer ser vivo, o cessar fogo contra a natureza que se arrebenta pela exploração, pelo desmatamento, pela terra arrasada. 

Quisera poder falar da queda de todos os governos que aviltam o planeta, de todos os bancos que extorquem nossas vidas, de todos os privilégios de meia dúzia de bilionários do mundo e proclamar uma sociedade fraterna, justa, igualitária, universal… de mãos unidas entre todos os povos.

Quisera afinal poder desejar um feliz Natal… mas sabemos que não será feliz. Com tantas mortes, com tantos abusos, com tantas perversidades, com tantas más notícias… Será necessariamente um Natal enlutado. Mesmo assim, podemos transformá-lo numa experiência meditativa e espiritual, que nos reconforte.

Como? Em primeiro lugar, conectando nossos corações com o personagem central do Natal – aquele que a civilização dita cristã diz seguir, mas está longe de compreender e aplicar sua proposta ética. Uma ética de inclusão, de amor, de perdão, de solidariedade e paz.

Nessa ética, nessa mensagem, nesse exemplo está uma luz que nos mostra um caminho de solução para nossos impasses. Luz que muitos ainda consideram utópica. Tantos não conseguem nem se reconciliar com os que amam num espírito natalino, outros tantos não enxergam como possíveis caminhos para nosso planeta proposições que consideram piegas, como compaixão, fraternidade e acolhimento.

Mas, sim, é essa ética que propôs Jesus que pode nos salvar do caos, da barbárie, da injustiça. Jesus, um personagem histórico que não deve estar encarcerado aos dogmas e às interpretações sectárias das igrejas, mas pode ser entendido como um ser humano, cuja transcendência, renúncia, entrega e amor continuam sendo um alta inspiração para as almas que anseiam pelo Reino da bondade nesse mundo.

Desapego dos bens terrenos, reconciliação entre todos e todas, perdão irrestrito, compaixão para com os que estão em sofrimento, trabalho incessante de serviço ao próximo, mesmo com perda em interesses próprios e egoístas, lutas por causas humanitárias, ecológicas, para transformações estruturais da sociedade… eis a receita para superarmos o capitalismo, o patriarcado, a miséria e todas as mazelas do mundo.

A recente encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti(Todos irmãos) – finalmente um Papa que consegue falar com cristãos e não cristãos – faz um diagnóstico preciso e brilhante de todos os problemas que devastam a terra e a nossa humanidade. E apresenta justamente uma proposta de superação, com essa ética de Jesus, exemplificada por Francisco de Assis, grande inspirador das ideais de Francisco de Roma. 

Que posso dizer então, nesse texto natalino? Ressaltar que em meio à avalanche de notícias pesadas que tivemos em 2020, foi publicada uma encíclica luminosa como essa, tivemos muitas lideranças no Brasil e no mundo na resistência contra o retrocesso da liberdade, da ciência, do amor ao próximo. Gente que sofreu, trabalhou, se entregou, fez a diferença. Cientistas, médicos e médias, enfermeiros e enfermeiras e pessoas da saúde em geral, lutando de corpo e alma, para combater o Covid, para descobrir tratamentos, vacinas, ou mesmo para pegar nas mãos dos moribundos, afastados da família, para que sua morte não fosse totalmente solitária. 

Artistas que se viraram do avesso para sobreviver à crise, iluminando lives de música, teatro, dança, poesia… e trazendo à nossas almas aquilo que realmente importa.

Professores que se esfolaram para aprender de última hora como mexer com o Zoom ou outras plataformas, outros tentando passar alguma coisa pelo mero Whatsapp, no caso das crianças que não têm acesso a computadores. 

Jornalistas corajosos, que denunciaram, apontaram as calamidades, brigaram pela verdade, contra tantas Fake News que manipulam a população – mesmo enfrentando processos injustos e até ameaças de morte. 

Pessoas de todas as profissões, exploradas por um capitalismo selvagem, como os entregadores de comida – só para citar um dos grupos em maior evidência no momento – que não só contribuíram para manutenção do funcionamento social, mas começaram a se organizar politicamente e ganharam consciência de classe. 

Negros de todas as partes do planeta, mas sobretudo dos EUA e do Brasil, que apesar das violências inomináveis sofridas, não descansaram um minuto na missão de denunciar, reivindicar, lutar… #vidasnegrasimportam, encerrando o ano aqui com o emocionante filme AmarElo, do Emicida, uma verdadeiro libelo pela retificação histórica dessa vergonha nacional que foi a escravidão e continua sendo o racismo entre nós.

Psicólogos, terapeutas, psicanalistas – que trataram a preços módicos ou gratuitamente – as pessoas em depressão, em surto, em grandes urgências psíquicas, provocadas pela pandemia, pelos lutos complicados, pelas violências aumentadas. 

Poderíamos estender indefinidamente as multidões de seres humanos do bem, que estão alinhados com a ética de Jesus. 

Lamentamos por aqueles que não cumpriram seu dever humano, cívico, moral de cuidar, proteger, acudir, providenciar medidas que pudessem minimizar a desgraça da pandemia e ainda aprofundaram nossas dores com todo tipo de violência verbal e atos contrários à justiça e à dignidade humana. 

Mas resistimos. Sobrevivemos. Para mim, que tenho convicção e fortes evidências de que a vida continua depois da morte, mesmo aqueles que se foram em meio a esse caos da pandemia, seguirão conosco, trabalhando em outro plano para mudarmos esse cenário terreno. 

Por isso tudo, e apesar de tudo, desejo que nesse Natal, possamos ter pelo menos um pensamento de paz, uma oração sincera (para aqueles que creem) e uma vibração de amor por toda a humanidade! 

*Texto originalmente publicado no Jornal GGN – em minha coluna Espiritismo Progressista


Cartas sobre a não violência (3)

jesus-cleansing-temple

Anunciamos na semana passada que iríamos refletir sobre a questão: Jesus era mesmo a favor da não violência?

Tolstoi e Gandhi, ao criarem o movimento da resistência passiva, se inspiraram diretamente no Sermão da Montanha. Será que estavam equivocados, ao interpretar Jesus como um pacifista?

No mundo antigo, entre judeus, romanos e gregos, que se saiba, nunca houve uma proposição ética de se perdoar e amar os inimigos, de se dar a outra face, de se oferecer em martírio, ao invés de se pegar em armas. Todo o mundo antigo se pautava, no Oriente e no Ocidente (talvez com a exceção de alguns discípulos de Buda) na ideia de que a honra deveria ser lavada em sangue. De que perdoar o inimigo era fraqueza e covardia. Aliás, o perdão jamais foi uma virtude sequer mencionada pelos antigos. Platão, em sua República ideal, coloca a classe dos guerreiros como guardiões da cidade. As virtudes, proclamadas por Platão e seu discípulo Aristóteles, eram a justiça, a temperança, a coragem e a prudência. Nada de fraternidade, amor, perdão… tudo isso é cristão – aliás, contra essas virtudes cristãs, Nietzsche vai bater seu martelo, considerando-as de maneira muito grega, como próprias de escravos.

Mas foi justamente essa uma das principais revoluções éticas de Jesus: colocar o amor como antídoto do ódio, o perdão como meio de resolução de conflito.

Outra revolução foi a ideia de igualdade. Hoje, quando defendemos uma Declaração Universal dos Direitos humanos, baseados na ideia de que todos e todas têm iguais direitos, apesar da laicidade desse documento, estamos assentados numa tradição cristã. Embora as Igrejas cristãs nunca tenham cumprido essa ideia de Jesus, incorporando em suas instituições tanto a violência, quanto o patriarcado, quanto a profunda divisão de classes… Jesus foi aquele que inaugurou a ideia de igualdade, que partilhou com as mulheres o pão e o ensino, enquanto os gregos, tão civilizados e criadores de tantas conquistas culturais, trancavam suas esposas e filhas nos gineceus e mantinham escravos. Os romanos, com seu Direito que até hoje deixou marcas no Ocidente, tinham em sua lei o pátrio poder de, inclusive, matarem suas mulheres e seus filhos. Jesus foi aquele que se dirigiu a judeus e a romanos, para escândalo dos judeus. Jesus foi aquele que falou com as crianças, para escândalo dos próprios discípulos. Jesus foi aquele que inibiu que se apedrejasse a pecadora.

Espanta-me que os estudiosos contemporâneos das escrituras, embora tenham muito progredido em apontar como se constituíram os Evangelhos, como se formaram os dogmas, como se amalgamaram as mensagens dos primeiros apóstolos com as tradições pagãs e com as estruturas políticas do Império Romano, não reconhecem como deveriam a originalidade ética de Jesus. Essa foi uma contribuição importante de Kardec com o Evangelho Segundo o Espiritismo, onde ele focou apenas os valores éticos propostos por Jesus. Hoje, quanto mais se despe Jesus dos seus aparatos mitológicos e se quer apreender o Jesus histórico, mais se pretende descrevê-lo apenas como um judeu milenarista de sua época, em luta contra o Império Romano ou esperando o advento próximo do Reino. Exemplo dessa interpretação milenarista está nas obras, em vários aspectos muito pertinentes, de Bart Ehrman.

Por que então teria sobrevivido Jesus a seu tempo, à sua região? Se fosse apenas um profeta zelote, interessado em derrubar o Império romano, ou um milenarista à moda dos essênios, à espera imediata do reino? De onde teria surgido essa ética tão insólita no mundo antigo: uma ética de amor e não-violência, de perdão e misericórdia?

Historicamente não se encaixa um homem judeu naquele contexto, ensinando algo que nunca foi dito… Para os cristãos tradicionais, tratava-se de uma pessoa divina; numa explicação hindu, poderia tratar-se de um avatar; para os espíritas, Jesus é um espírito elevado, que já atingiu um nível de perfeição acima dos seres humanos. Ainda um ateu pacifista pode muito bem aceitar a ideia de que se tratava de uma pessoa fora da curva, fazendo história, de maneira singular e inédita. O argumento sinuoso de que o Jesus histórico, revolucionário armado, revoltoso contra Roma, tenha sido domesticado historicamente, parece sem referências concretas, mas apenas especulações de quem quer achar o apoio do Cristo para a violência.

Pode-se perguntar: ele não expulsou os vendilhões do templo? Sim, rebelou-se contra a exploração da fé. Foi duro contra os fariseus e isso nos mostra como a não violência não é assentimento da violência, da exploração e da opressão.

Mas a mensagem de Jesus foi uma mensagem universalista, dirigida ao ser humano e não apenas a uma parcela, classe ou gênero… Ele pretendia a salvação, a redenção ou, interpretado de forma diferente, a iluminação e evolução de todos e todas. Do pobre e do rico, do homem e da mulher, do romano e do judeu, do senhor e do escravo.

Assim entendeu Gandhi, que ao lutar pela liberdade da Índia, não exercia o ódio contra os ingleses (e ele tinha motivos de sobra para um ódio fervoroso), mas queria tocá-los e lhes dar uma lição de justiça e fraternidade. Ao mesmo tempo, entendia que seus compatriotas, embora vítimas da dominação inglesa, também exerciam eles próprios a opressão das castas, sobretudo em relação aos intocáveis, aqueles que estavam fora de todas as castas e assumiam os trabalhos sujos da sociedade. O processo de Gandhi foi o de se unir aos intocáveis, fazendo os serviços considerados impuros,  que eles eram obrigados a assumir. Não se considerava com moral para lutar contra o colonialismo inglês, se ele próprio participasse da opressão interna de seu país. Nesse duplo movimento, Gandhi mostrava que a violência está entre opressores e oprimidos e que precisamos despertar uma consciência de irmandade em todos os membros da sociedade humana.

A prática da não violência está comprometida a acabar com qualquer relação de opressão e violência e não usar novas modalidades de coerção, para supostamente acabar com a violência estrutural da sociedade.

Por isso, Jesus dizia que o reino de Deus está dentro de nós – dos judeus e dos pagãos; dos homens e das mulheres; dos ricos e dos pobres; dos ladrões e das prostitutas; dos poderosos e das crianças… é preciso acordar esse reino nos corações e não eliminar os que andam sonolentos, inconscientes, gritando e ferindo, enlouquecidos. Isso não significa que não devamos nos opor com todo o engajamento possível às violências, às injustiças, ao extermínio mesmo de seres humanos, pertencentes a esse ou aquele grupo. Derrubemos as mesas do templo, com o mesmo chicote de Jesus. Mas ele não matou os mercadores.

Entretanto, esse caminho da não violência exige mudanças profundas na consciência e na ação de seus praticantes. É o que veremos na próxima carta.


Cartas sobre não-violência (2)

jesus-christ-divine

 

Continuamos aqui as reflexões sobre a não violência, iniciadas na semana passada. Retomando a partir de Jesus, já que é a referência principal dos cristãos, que supostamente são a maioria em nossa sociedade, em suas diversas denominações. Em nome de Jesus, tanta violência já foi cometida e continua sendo propagada e aplicada, que parece importante decifrar sua mensagem.

Os cristãos, em sua maioria, não aceitaram a não violência de seu mestre. Desde os primeiros séculos, promoveram perseguições entre eles mesmos, sem mencionar a virulência contra os pagãos e os judeus, assim que conseguiram se estabelecer como religião aceita no decadente Império Romano. Divergências teológicas provocavam brigas armadas; catequese à força implicava e implica ainda em destruição de outras formas de crença (dos pagãos dos anos 400 às crenças indígenas e afro-brasileiras da atualidade); conluio indecente entre poder religioso e poder do Estado – desde Constantino ao nosso (des)governo atual. Muito ilustrativo é o filme Ágora (ou Alexandria),  em que se narra a história de Hipátia, uma filósofa e matemática, que foi trucidada por cristãos, no ano de 415. Apesar de algumas imprecisões históricas, o filme reflete bem o clima da época.

Ora, os cristãos nunca levaram a sério a mensagem de amor, perdão, fraternidade e paz propagada pelo Mestre que dizem seguir.

Por isso, o modo não violento de agir nunca foi experimentado no mundo, e isso inclui Ocidente e Oriente (e me parece que no caso no Oriente, Buda também tinha uma postura de não violência, pela sua ênfase na compaixão). Todos os governos, todas as empreitadas, todas as resoluções de conflito e toda a estrutura social (seja escravagista, feudal ou capitalista), sempre se deram na base na violência, do morticínio, da opressão, diga-se de passagem, no enquadramento do patriarcado. Esse mundo violento e opressor que conhecemos é um mundo governado pelos homens, que já se constituíram desde a pré-história, como guerreiros. Raras sociedades tiveram mulheres guerreiras.

É factível pensarmos em mudar isso? Será ingenuidade querer transformar a espécie humana, gerada na luta pela sobrevivência, segundo a visão de Darwin, e mantida historicamente na luta de classes, segundo a perspectiva de Marx, carregando sempre no inconsciente, um impulso cego de destruição, segundo a visão de Freud?

Desejamos que sim, esperamos que sim, acreditamos que sim. É possível, necessário, urgente… mudarmos o padrão de comportamento violento, que começa nas microestruturas familiares e escolares e se estende aos impérios e às nações…

Se alguns seres humanos se propuseram e conseguiram agir nesse sentido, todos podemos, se acreditarmos nesse caminho e trabalharmos por ele. Claro que o pressuposto de uma natureza humana que contém uma centelha divina, um potencial crístico ou búdico, ajuda a nos enxergar esse possível caminho.

Então, é preciso combater a injustiça, a exploração, a fome, as estruturas de poder, mas superando igualmente em cada um de nós a fonte de agressividade, ganância e sadismo. Se combatemos todas as estruturas injustas com mais violência e ódio, alimentamos em nós os mesmos impulsos que as geraram em primeiro lugar. Não existe a dimensão social sem a dimensão psíquica e vice-versa. Um grande autor como Erich Fromm, que fez um diálogo construtivo entre marxismo e psicanálise, demonstra bem esse ponto, ao analisar as origens do nazismo em seu brilhante livro O Medo à Liberdade.

Para combater um fascista não posso agir como ele, senão me torno igual a ele. Não podemos ser moles, permissivos, indiferentes, coniventes, medrosos. Temos que manter a coragem, a dignidade, a firmeza, a resistência, a desobediência, mas não podemos nos deixar tomar pelo ódio, pelo desejo de extermínio, pois estaremos coisificando o outro, tanto quanto ele nos está coisificando. Ao invés de nos deixarmos tomar pela sombra do ódio, temos que acender uma luz interna, que poderá um dia iluminar também o outro. Para mim, espírita, esse dia pode ser agora ou em próximas vidas.

Pode-se alegar então: devemos entregar o pescoço para o inimigo? Não. Toda defesa é necessária. Mas na luta armada, não se pode também morrer? Então, melhor a morte do martírio, que fecunda um mundo novo, do que a morte levando outros junto, que perpetua a guerra e a violência, num ciclo sem fim.

Para o pensamento masculino, patriarcal, aquele que se constitui na violência de ser macho predador,  essas ideias são ingênuas, fracas, indignas. Passados dois mil anos da mensagem de Jesus e mais de dois mil anos da mensagem de Buda, ainda ocidentais e orientais consideram que perdoar é desonra, é humilhação e falta de dignidade.

Na próxima carta-reflexão: Jesus foi mesmo a favor da não violência?

Publicado originalmente no meu blog Espiritismo Progressista, no Jornal GGN.


Cartas sobre não-violência (1)

542db3dcaced19.02852284

Esta é a primeira de uma série que vou escrever semanalmente e publicar simultaneamente nessa minha coluna de Espiritismo Progressista, replicando em meu blog pessoal e no blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita. Continue lendo


Pensando nas dores humanas – de cada um e de todos nós

xaustralia.jpg.pagespeed.ic.a6-vULBJs4

Acordei hoje pela manhã, no quarto dia do ano de 2020, e já tive que fazer uma longa oração para buscar conforto e inspiração, como antidoto às más notícias do mundo. O céu vermelho de fogo na Austrália, o assassinato através de um drone de seres humanos no Irã (já foram, segundo li, mais de 5 mil assassinatos que o Império americano perpetrou com drones direcionados – muitos deles sob ordem pessoal do próprio Barack Obama, que muitos acham que foi diferente dos outros presidentes – e não importa que digam que sejam terroristas os que morreram, um Estado que faz isso, assassinando à distância, de forma covarde, sem defesa, é um Estado terrorista também).

Passam também pelas minhas redes sociais, fotos terríveis de crianças fugindo, no meio do mar, crianças separadas dos pais, por muros de campos de refugiados… Por toda parte, violência, fome, injustiça e dores inomináveis.

Lembro-me então de duas pessoas iluminadas que pisaram nesse mundo: Buda e Jesus. O primeiro saiu de sua vida principesca para buscar um caminho de libertação do sofrimento para o ser humano. O segundo, saiu de sua vida celeste para vir viver e morrer na terra, partilhando de nossas dores. E ambos, e tantos outros, ensinaram o caminho do desprendimento, da renúncia, da compaixão e da paz.

Mas… ainda estamos distantes desses caminhos.

E eu me pergunto: para que tanta dor? Seria necessário tudo isso?

Em outra ótica, as escalas menores de dores humanas: as pessoas que passaram sozinhas o Natal, as famílias divididas, os filhos que não visitam os pais, coisa que quase nenhum motivo justifica (digo quase, porque talvez seja uma exceção quando houve abuso sexual na infância), os pais que exilam diariamente os filhos em terceirizações várias, para trabalhar em excesso ou apenas para garantirem seus espaços de “aproveitar a vida”.

As multidões sozinhas, em depressão, adoecidas psiquicamente, por falta de olhos nos olhos, por falta de mãos que as segurem, por desespero existencial, por falta de propósito…

Os doentes crônicos ou terminais, sem amparo do Estado, da sociedade e aqueles sem amparo da própria família…

Os prisioneiros, apartados da sociedade, mesmo que tenham cometido crimes, quase nunca há um projeto de verdadeira ressocialização e a prisão é muito mais uma vingança social, uma humilhação da dignidade humana; sem mencionar os que estão lá sem ainda terem sido julgados e estão lá porque fazem parte de uma população etnica e socialmente desprivilegiada e, portanto, sempre suspeita, e portanto sempre sujeita às penalidades desumanas de um sistema opressor.

E mais uma vez, pergunto, para que tudo isso? Para que virar a cara para um familiar, por causa de uma pequena contenda ou discordância? Para que matar um inimigo à distância, ameaçando o mundo com mais uma guerra? Para que abandonar à míngua um ente querido? Para que manter em cárcere multidões que não receberam oportunidades de educação e trabalho e cujo encarceramento, assim como ele é, não redundará em novas oportunidades e melhorias?

Para que nos atormentamos tanto? Para que temos tanto sofrimento nesse mundo?

Por causa desse estado de coisas, muitos deixam de acreditar em Deus. O vale de lágrimas desse planeta é tão abismal, que nossa angústia pode interpelar a Deus, como fazia o poeta: “Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, senhor Deus, se é mentira ou se é verdade, tanto horror perante os céus?”

No imprescindível documentário Papa Francisco, um homem de palavra, no meio de uma belíssima entrevista com ele, aparece essa questão: por que sofrem os inocentes? Por que sofrem as crianças? O Papa se refere à liberdade humana. Sim, muito de nosso sofrimento decorre de nossa ganância, de nossa ignorância, de nossa violência, de nossa indiferença. Mas ainda a pergunta persiste: diante de um Deus bom, por que sofrem inocentes? Não adianta apenas responder com a chamada lei de causa e efeito das múltiplas encarnações. Aliás, Buda quis justamente achar um caminho que nos livrasse dessa roda cíclica do karma, que ele, como hindu, estava ciente de existir. Entretanto, a lei de causa e efeito não justifica tanta dor no mundo. Primeiro, porque os animais, que estão fora do domínio da liberdade humana, sofrem tremendamente – muito por causa da ação perversa do homem, mas não só. Segundo, porque não podemos nunca dizer (e isso é um alerta para os espíritas que adoram simplificar o entendimento das coisas de uma maneira superficial e apressada) que um determinado sofrimento seja consequência de más ações de outras vidas. Nunca houve tiranos, criminosos, perversos suficientes no mundo para terem depois reencarnado aos milhões, sofrendo toda essa barbárie como câmeras de gás nazistas, fome na África, massacres em guerras, escravidão no trabalho…

Então, paremos de querer equacionar tudo de maneira exata, matemática, como se fôssemos donos de verdades prontas e definitivas.

Existe a liberdade humana, sim, e dela decorrem as más escolhas individuais e coletivas. Exista e roda indefinida do karma, em que nos enredamos por ignorância, inconsciência (aliás, punindo a nós mesmos, porque não haveria necessidade de punição, apenas de tomada de consciência e reparação). Existem também as condições naturais da vida material, as doenças, o envelhecimento, a morte, que são dores incontornáveis da nossa humanidade – as coisas que impressionaram Buda, quando saiu de seu palácio para olhar a vida lá fora. Existem hoje, no mundo contemporâneo, as condições estabelecidas por um capitalismo selvagem e global, que gera lucro de uns poucos e miséria de milhões, que agride a natureza e está levando o planeta à bancarrota climática. As causas das dores humanas são múltiplas, entrelaçadas, complexas… Por isso, podemos recorrer ao budismo, ao cristianismo e ao espiritismo, ao marxismo e ao anarquismo, à psicologia e à psicanálise, para tentarmos apalpar as nossas desgraças, as nossas dores e as nossas cegueiras. Não se trata de uma miscelânea de ideias, que não combinam entre si e que vamos aplicar de maneira superficial para captarmos a realidade. Mas, cada um que procurou meios de sanar nossas dores, seja por caminhos espirituais, seja por revoluções sociais, seja por terapias de cura de nosso psiquismo ou de propostas de ascensão de nossa alma, cada mestre, cada filósofo, cada pensador, cada ativista, pode ter trazido alguma luz, para enfrentarmos a angústia de estarmos mergulhados num mundo tão sofrido.

Gosto muito de uma abordagem do grande escritor espírita Léon Denis: para ele, a dor faz parte de nossa condição humana porque nossa evolução ou maturação como espíritos imortais passa pelas dores do parto dessa ascensão. Ou como diriam muitos mestres, orientais e ocidentais: estamos, a maioria, dormindo. A dor nos desperta. Não adianta portanto, nos escondermos dela, num turbilhão de futilidades ou numa espiritualidade light de autoajuda egoísta. Como Buda e como Jesus, temos que encarar as dores humanas, nos compadecermos profundamente delas, e com nossa consciência desperta, acordarmos o maior número possível de pessoas, através de nossa entrega, de nosso amor, de nossos gestos de luta, em paz.

 


O Francesco que me (nos) toca a alma

1430117769-sanfrancesco

A figura histórica que mais me comove, depois de Jesus, e justo por ser o mais próximo dele, o que melhor manifestou seu amor é Francesco, Francisco, Francisquinho…

Reler sua história, orar seu Cântico do Sol, assistir filmes sobre ele (meus proferidos e insuperáveis são Irmão Sol e Irmã Lua, de Zeffirelli e Francesco, de Liliana Cavani), simplesmente lembrar-me de sua figura, derrete meu coração…

Não é algo só meu. Ele é o santo mais popular da Igreja e católicos, protestantes, espíritas e ateus se sentem tocados pelo Poverello de Assis.

Em seu diário de viagem pela Itália, Fanny Mendelssohn Hensel, a compositora  judia (convertida ao protestantismo), confessa em sua passagem por Assis, no ano de 1832, que quase virava católica por causa de Francisquinho.

Mas seria possível explicar essa capacidade universal e atemporal de arrebatar almas, que tem Francisco?

Não sei se me arrisco a empalidecer os sentimentos que ele provoca, ao tentar fazer algumas reflexões a respeito.

Estamos em plena Idade Média, mas nesse momento, está nascendo o capitalismo, na sua forma primeira de mercantilismo. E Pietro Bernardone é justamente o protocapitalista: fascinado pelo dinheiro, com empregados tingindo tecidos em condições sub-humanas de trabalho. Louco para que seu filho, à custa de guerras e ouro, se torne Conde. As Cruzadas andam à solta – intolerância, mortes em nome de Deus, invasões a terras distantes, a Inquisição está batendo à porta da história, aliás começa bem no tempo de Francisco. As mulheres andam cobertas, como andam hoje as muçulmanas e se puderem participar da vida religiosa, encerram-se em clausuras.

Neste longo período medieval, o povo analfabeto não conhece diretamente o Evangelho. As missas são em latim, mas há muitos séculos os povos europeus esqueceram o latim e desenvolverem línguas locais. Ignoram assim o que Cristo ensinou.

O povo vive na miséria, os leprosos excluídos da cidade, sem cuidados, à mercê da caridade de alguns; jamais podem ser tocados, nunca mais verão suas famílias, morrerão entre a podridão e a fome, revoltados e sozinhos.

A Igreja se interessa muito mais pelas guerras “santas”, pelo ouro da nobreza, pelo domínio do mundo do que pelos ensinos do humilde e suave Nazareno.

A natureza jazia à distância da poesia e da literatura – tudo era voltado apenas para a submissão e a glória de Deus. Apenas canções cavalheirescas dos menestréis davam um tom mais romântico à beira dos castelos, onde as damas eram também enclausuradas.

Profundos fossos sociais, enormes injustiças, por toda parte sofrimento desamparado: nem escolas, nem hospitais, numa Europa que se dizia cristã.

E nasce um menino em Assis, que iria se insubordinar contra tudo isso com graça, leveza, amor e poesia.

Primeiro, Francesco experimenta os prazeres mundanos, com a riqueza do pai; depois vai em busca da glória guerreira.

Mas dois eventos o despertam e o relembram a que viera: a sua prisão em Perugia e a voz explícita de Jesus, que o chama a reconstruir sua Igreja.

Ele tem contato com um texto do Evangelho em língua vulgar – coisa considerada alta subversão na época (uma forma do povo não conhecer que a sociedade estava estruturada em total oposição aos princípios igualitários e fraternos do Mestre). E será ele a escrever a primeira obra literária do que viria depois a ser a língua italiana:  o Cântico do Sol é em vulgar. Antes de Dante, Francesco inaugura o italiano.

Sua primeira regra – que não será aceita pelos próprios franciscanos e pela Igreja – é em língua vulgar e, em sua maior parte, uma repetição pura e simples de mandamentos de Jesus.

Era como uma revivescência refrescante e confortadora das palavras do Mestre – um apelo direto ao coração cansado do povo e um ideal de vida pura para a juventude enojada do sangue das guerras.

Francesco provoca uma revolução. Arrasta a juventude de Assis e inclui as mulheres, com Chiara e suas amigas – que a princípio começam a viver junto dos primeiros amigos de Francisco. Inédito na Idade Média: mulheres misturadas com homens, cuidando de leprosos, andando pelas ruas, sem a tutela de maridos e pais. Um escândalo. A história oficial da Igreja trata de abafar esse episódio e diz que Chiara foi desde o início uma enclausurada. Mas Jacques Le Goff e Inácio Larrañaga refutam essa versão arrumadinha e comportada, dentro dos padrões impostos pela Igreja.

Francesco e seus companheiros e companheiras invertem a ordem das coisas: fazem da Igreja de Porciuncula um abrigo para os pobres, cuidam dos leprosos, tocando-os, abraçando-os, sobretudo devolvendo-lhes a fé e a dignidade.

A comunidade primeira dos franciscanos é alegre, é jovem, é livre, é pura…

Um libelo contra a sociedade hierarquizada, pesada, sangrenta de então. Mas um libelo amoroso, que não condena.

Aliás, esse é o encanto de Francesco. Ele exemplifica, sem arrogância. Ele mostra de forma concreta (através de atos dramáticos e simbólicos, como o despir-se publicamente ou a criação do presépio) um amor infinito por todos. Socorre os pobres, tocando os ricos. Se faz um frade despojado, falando sem rancor com papas e cardeais. Conversa com os pássaros, mas também amansa os lobos. Deixa marcas profundas em todos, por sua poética simplicidade, ardente sinceridade e amor sem condições.

Le Goff mostra em sua biografia magistral o quanto a Igreja se empenhou em arrumar a história de Francisco dentro dos seus cânones, chegando a destruir narrativas originais. Fizeram dele um santinho melado, bem obediente às ordens papais.

Mas não foi assim. Francisco fez uma revolução pacífica, amorosa, apenas para dizer e mostrar uma coisa: é possível viver o Evangelho em sua radicalidade, de fraternidade, de desapego, de amor – o que contrastava e contrasta até hoje com as sociedades que se dizem organizadas, dentro da herança ocidental cristã.

Nascia um mundo, em que o principal deus seria o dinheiro. Francesco renuncia a tudo e proclama: a pobreza é a liberdade. Homens e mulheres de sua época responderam ao seu chamado. E até hoje, sua é mensagem atual, tocante, transformadora!

Salve, Francisquinho!


O aborto e a gratidão por ter nascido

11722348_10204643661513594_3531875688049497367_o

Minha mãe e eu, 54 anos atrás

Hoje, no dia do meu aniversário, uma data que sempre me alegra, pois gosto de ter nascido, resolvi escrever algumas considerações sobre esse tema tão controvertido: o aborto. Se estou comemorando meu aniversário e vivendo uma vida plena de sentido, é porque minha mãe permitiu que eu nascesse. Me recebeu e me acolheu, com a participação de meu pai. Então, é bastante pertinente falar sobre esse tema, nesse dia. Meu dia de entrada nessa vida.

Penso que esse debate sempre caminha por lados opostos, com argumentos que não tocam o cerne da questão.

Primeiro, a criminalização ou descriminalização do aborto não tem necessariamente a ver com ser contra ou a favor do aborto. Pode-se ser a favor da descriminalização e contra o aborto. No meu ponto de vista anarquista, obviamente acharia ridículo uma mulher ir para a prisão porque praticou aborto. Mas eu também considero todo o sistema estabelecido da justiça, com suas penalidades, prisões, humilhações, exclusões sociais, algo absolutamente abominável porque atenta contra a dignidade humana, exerce apenas uma função punitiva e nunca educativa. Não melhora ninguém. Por isso, não me comprazo nem mesmo quando políticos, de que tenho ojeriza, vão para a cadeia. Tenho pena, acho que não adianta, penso que se trata de vingança da sociedade e não justiça. Acredito em qualquer circunstância, mesmo com crimes graves, em justiça restaurativa, reparadora, que possa na medida do possível aproximar o criminoso e a vítima, trabalhar-se pelo perdão, pela reparação e pela recuperação do indivíduo. Coloco aqui um vídeo emocionante sobre o efeito da misericórdia e do perdão sobre um criminoso – do qual muitos diriam: “bandido bom é bandido morto.”

Posto isso, se não concordo com esse sistema penal que está aí, não o desejo como solução de nenhum problema.

Mas isso não quer dizer que não considere o aborto um grande problema e já direi por quê!

Segundo, todos os que defendem a descriminalização do aborto usam do argumento de que o Estado, sendo laico (e é laico no Brasil, pero no mucho, infelizmente), não pode legislar baseado em princípios religiosos… Concordo inteiramente! Mas a coisa não é tão simples assim.

Vivemos numa civilização, cujos valores foram herdados do cristianismo. Por exemplo, na Grécia antiga, era normal atirar crianças defeituosas dos penhascos. Ou seja, havia a prática legal de uma eugenia à moda nazista. Em Roma, o pai (pater) tinha direito de vida e morte sobre a mulher e os filhos. Que filosofia moral amenizou esses costumes? Que religião valorizou a mulher e a criança (quando essa religião seguiu aquele que elegeu para seu Mestre)?  O cristianismo, quando entendido dentro das mensagens deixadas por Jesus, veio para defender justamente os excluídos, os sem voz: a criança, a mulher, os marginalizados etc. Se por um lado, os cristãos viraram do avesso, e até hoje viram, os ensinamentos de Jesus, por outro lado, esses valores humanistas foram a base do avanço da legislação no Ocidente. Então, quando dizemos que o Estado deve ser laico significa que ele deve proteger a liberdade religiosa e não se deixar dominar por interesses de grupos religiosos e nem legislar com base em dogmas específicos dessa ou daquela religião. Mas pode e deve se inspirar nos valores humanos universais, que por acaso são os do cristianismo bem entendido. Entre eles, um dos mais fortes está o respeito à vida.

Mesmo assim, não é preciso se recorrer a nenhum valor cristão para se tomar uma posição anti-abortista. A questão é saber se aquele feto que ali está é um sujeito de direitos ou não. Se é alguém ou apenas um projeto de alguém, que pode ser abortado.

Podemos então conversar com a Ciência e não estaremos invocando crenças particulares. Vou apenas citar um livro, interessantíssimo, sobre uma pesquisa feita por uma psicanalista italiana, Alessandra Piontelli, De Feto a Criança – um estudo observacional e psicanalítico. Nessa pesquisa, essa médica acompanhou a gravidez de 11 mulheres e depois seguiu os filhos delas até o quarto ano de vida, entre eles, alguns gêmeos.

Pois bem, fica evidente, que há vida inteligente e emocional no feto, porque há memórias e comportamentos nas crianças, relacionados com a vida pré-natal. E há outras pesquisas nesse sentido. Eu mesma tenho um trauma pré-natal, porque minha mãe estava no quinto mês de gravidez, quando o avião em que estávamos quase caiu. Até hoje, aos 54 anos, tenho a sensação de queda quando subo ou desço uma ladeira muito íngreme, evitando pegar ruas com declive muito acentuado.

Se há memória, trauma e até conhecimento de fatos que ocorreram durante a estadia no ventre da mãe, de que depois a criança lembra em forma de emoções, comportamentos etc, então há ali um sujeito pensante, sensível.

Ainda falando de pesquisas científicas, lembro aqui os 2500 casos de memórias espontâneas de crianças sobre suas vidas passadas, estudadas por Ian Stevenson e sua equipe, na Universidade de Virginia. Casos com fortes evidências, de lembranças precisas, com marcas de nascença, que foram cuidadosamente analisados nessas investigações. Se a memória precede a fecundação, então desde o inicio há vida inteligente e perceptiva ali. Portanto, quando se pratica um aborto, já se está eliminando uma vida consciente e sensível. Aliás, basta ver o feto se defendendo dos alicates que o tiram aos pedaços durante o aborto.

Tudo isso posto, sim, o aborto é crime.

Mas o que vamos fazer com isso?

Dentro da perspectiva que citei acima, crimes não devem ser punidos, mas perdoados e prevenidos. Nesse caso, não perdoados por outros, mas por quem o cometeu (pois o mais difícil é perdoar-se a si mesmo) e prevenidos pela sociedade, sobretudo pela educação e por condições sociais que deem o apoio devido à mulher, para que ela não seja conduzida a um ato infeliz, por falta de apoio, esclarecimentos e recursos, embora, legalizado ou não o aborto, sempre ela terá a liberdade de praticá-lo.

Para prevenirmos o aborto, haveríamos de ter várias atitudes:

  • Uma eficaz educação sexual, com orientação para o uso de contraceptivos;
  • Campanhas educativas e esclarecedoras sobre a vida intrauterina e as consequências psicológicas traumáticas para as mulheres que praticam aborto;
  • Educação e conscientização dos homens, para que assumam suas responsabilidades e saibam que têm exatos 50% de dever de receber e acolher o filho que fizeram;
  • Valorização social da maternidade, com licença maternidade mais extensa, com licença paternidade, com respeito às mulheres que decidem ter filhos e não as considerando um estorvo no mercado de trabalho;
  • Centros de apoio para as mulheres que têm gravidez indesejada, com ajuda psicológica, orientação médica e jurídica e apoio espiritual (inter-religioso), para que a mulher possa ter conhecimento de todas as variáveis que envolvem o aborto.

E para quem já fez aborto? Não cabe a ninguém julgar, porque há inúmeras circunstâncias adversas que podem levar a mulher a praticá-lo ou simplesmente o desconhecimento do quanto o feto ali presente é já um sujeito de direitos e uma alma reencarnante (e isso não é apenas uma crença, mas algo de que já temos muitas evidências, mas que precisa ser alguma hora incorporado ao paradigma científico). Cabe-nos pois esclarecer e divulgar e não julgar e condenar.

Meu querido Pestalozzi, o gênio desconhecido no Brasil, cujas obras aqui nunca chegaram, escreveu uma obra-prima ainda no final do século XVIII, considerada a primeira pesquisa de sociologia da juventude do mundo: Legislação e Infanticídio. Naqueles tempos, havia em Zurique, na Suíça rigidamente protestante, uma onda de mulheres que matavam seus filhos ao nascer e depois eram condenadas à morte. Pestalozzi vai fazer um estudo dos processos e das histórias dessas mulheres. E chega à conclusão de que elas não eram culpadas. Chegavam do campo na cidade, pobres e sem educação e eram logo seduzidas (naquela época, sim, havia essa “sedução”, pois não havia a mínima educação sexual), por homens, que uma vez tido um breve relacionamento com elas, as abandonavam a si mesmas, muitas delas já grávidas. Ora, a sociedade católica sempre teve vias de escape para o “pecado”: a prostituição ou o convento, a roda da Santa Casa de misericórdia para as crianças nascidas em situação ilegítima… Na sociedade protestante, nada disso existia. Essas mulheres não tinham escapatória. Era a miséria, o escárnio público, não havia nenhum lugar para elas ou para seus filhos “bastardos”. Por isso, no desespero, matavam seus próprios filhos, ao nascerem. Pestalozzi escancara o problema e culpa a sociedade opressora, moralista e, sobretudo, os homens, por sua fuga à responsabilidade.

Hoje, essa situação específica que Pestalozzi descreve não existe mais na civilização ocidental, pelo avanço das mentalidades, pela mudança de padrões culturais e comportamentais.

Assim também deverá ser com o aborto.

Cabe-nos fazer uma sociedade em que a vida competitiva do mercado e os empregos massacrantes das corporações não sejam mais importantes do que a maternidade e a paternidade. Cabe-nos promover um mundo sem tantas diferenças sociais, em que todas as mulheres tenham acesso à educação. Cabe-nos construir um mundo em que o ventre materno seja um reduto sagrado de vida e a sociedade inteira se mobilize para preservar essas vidas que se reiniciam.

E eu só posso escrever tudo isso, porque nasci. Porque minha mãe me acolheu em seu ventre e me deu à luz. Toda vida é uma promessa de transformação e evolução para o planeta. Deixemos as crianças virem abençoar nossas vidas! E quando não as quisermos, há recursos para evitá-las, sem que as arranquemos do ventre, quando já tiverem sido concebidas.