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O Jesus de todos e de todas na Páscoa!

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Este homem que dividiu a história do Ocidente entre antes e depois dele, tem as mais diversas representações por diferentes grupos de crença e abordagens históricas e filosóficas. Para católicos, protestantes, ortodoxos gregos ou russos, ele é Deus que se fez homem e habitou entre nós, para nos livrar do pecado e trazer a ressurreição e a vida. Para muçulmanos, ele é um grande profeta, ao lado de Moisés e Maomé, e sua mãe Maria tem um capítulo dedicado a ela no Alcorão. Para judeus, poderia ter sido um profeta incorporado na Bíblia judaica, mas como se tornou um ser divinizado e, portanto, uma pessoa da Trindade, não poderia ser aceito por uma tradição espiritual (assim como o islamismo) que sequer representa pictoricamente o ser humano e muito menos Deus… Para judeus e muçulmanos, a ideia da Trindade (pai, filho e Espírito Santo, três pessoas num único ser) beira o politeísmo. 

Para espíritas kardecistas, cuja definição de Deus é a de um Ser cósmico, que rege os mundos infinitos, muitos dos quais habitados, sendo o universo uma vasta morada de humanidades; um Deus transcendente e imanente, legislador e mantenedor de todas as coisas, é impensável sua encarnação humana. Portanto, trata-se de um Espírito puro, iluminado, perfeito, mas criatura de Deus, como todos nós. 

Nada impede que um hindu, como Gandhi ou Tagore faziam, ou um budista, considerem-no um ser que atingiu a iluminação.

Anarquistas, socialistas, comunistas podem vê-lo como um revolucionário político, alguém que se opôs aos poderosos da época, colocando-se ao lado dos fracos e dos vulneráveis e por isso teve sua vida arrancada muito cedo, depois de ter sido condenado e torturado.

E é possível ainda que conversemos com essas diversas concepções: para mim, Jesus é um profeta sim, iluminado, que atingiu a perfeição possível que conhecemos, mas claro, também um desestabilizador da ordem estabelecida, crítico das injustiças, indignado com a hipocrisia farisaica, e por isso foi morto por judeus e romanos. E sim, também, em certa medida posso vê-lo como uma manifestação da divindade, porque Deus está em todas as suas criaturas e o processo de ascensão humana é uma gradativa descoberta e realização de Deus em nós. Lembrando a prece de Fernando Pessoa:

“Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.”

Entretanto, como quer que consideremos Jesus, ninguém pode discordar de que seu ensino e seu exemplo foram o “de amar ao próximo como a si mesmo”, o “de perdoar setenta vezes sete”, o “de dar o pão a quem tem fome e visitar o prisioneiro”, o “de buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, o “de servir e não buscar ser servido”, o “de amar aos próprios inimigos” – ideias e práticas de amor incondicional, de justiça, de verdade, de moralidade plena. E por que todos aqueles que dizem segui-lo, que afirmam admirá-lo e prestam cultos para louvá-lo, simplesmente fazem ouvidos moucos para essas diretrizes? No fundo, palavras bonitas, mas utópicas, para fingir que se cumpre, enquanto o ódio, o sadismo, a injustiça e a banalidade do mal andam às soltas no planeta e fazem morada no Brasil!

Mas a Páscoa é símbolo de esperança. Porque nela, Jesus se demonstrou imortal – do ponto de vista da ressurreição da carne, para os cristãos tradicionais; do ponto de vista espiritual para nós, espíritas; e do ponto de vista histórico, porque depois de 2 mil anos de seu martírio, continua tão vivo como sempre em tantos corações, como uma âncora de conforto e como uma bússola de bondade.

Por isso, boa Páscoa a todos e todas!


Jesus, a Páscoa e o momento de ódio em que estamos mergulhados

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Não posso deixar passar essa Páscoa, sem uma reflexão sobre seu personagem principal, para quem se considera cristão. E nesse momento de grande tumulto no Brasil e no mundo, com tanta violência e tão denso nevoeiro, estou pensando nos cristãos…

Esses cristãos que compõem a maioria da população brasileira, pelo menos no censo, divididos majoritariamente entre católicos, evangélicos e espíritas.

Esses cristãos que, em sua maioria, não fazem conta dos ensinos de Jesus. Que talvez achem que são palavras poéticas, bonitas, mas preceitos inaplicáveis na vida prática. Ou ainda que são ensinos que só possam ser pensados em relações pessoais, mas nada podem acrescentar às relações sociais, à organização política, à produção econômica… Teorias bonitas, mas utópicas, que não são para esse mundo… E no entanto, há dois mil anos que essas belas palavras estão buscando nosso coração e nossa mente e estão sendo semeadas, muito além das relações de indivíduo a indivíduo, sendo justamente o fermento de avanços em todas as áreas, no Direito, na Educação, na Política, na Sociedade, na Economia.

Só para citar três exemplos: um ateu, como André Comte-Sponville, ou um judeu, como Erich Fromm, ou um historiador da Educação, como Franco Cambi, reconhecem que a mensagem de Jesus – essa de fraternidade universal, de igualdade, de valorização dos excluídos – permeia toda a história da civilização ocidental, sendo a base de muitas de nossas conquistas sociais, inspiração de muitos direitos concretizados, vertente do humanismo mais universal que habita mesmo doutrinas, movimentos sociais e leis, que se consideram laicos, mas carregam dentro de si, as sementes cristãs.

E, no entanto, ainda muitos cristãos não conseguem se deixar permear por essa onda refrescante de amor, liberdade, compaixão, humanismo… que sopra das palavras e dos exemplos de Jesus. Muitos cristãos que agem com o outro, que se portam socialmente, que trabalham em seus empregos e empreendimentos, que têm uma visão da lei e da justiça, da sociedade e do mundo, em completa oposição ao que ensinou, ao que demonstrou Jesus.

Senão vejamos!

Como pode um cristão ser racista, se a compreensão que lhe felicita é a da fraternidade universal? Se Jesus mostrou que seus discípulos viriam do Ocidente e do Oriente e que todos seriam bem-vindos ao banquete do Reino?

Como pode um cristão discriminar alguém por sua conduta sexual, se Jesus acolheu aqueles que eram considerados “pecadores” e fez questão de, depois de morto, aparecer em primeiro lugar para Madalena, uma prostituta, que os judeus da época julgavam que deveria ser apedrejada?

Como pode um cristão proferir uma frase do tipo: “bandido bom é bandido morto”, se Jesus disse “misericórdia quero e não sacrifício” e ele mesmo morreu entre dois ladrões, acolhendo-os em seu amor?

Como pode um cristão acreditar, pregar e praticar qualquer tipo de violência, armada, física, psicológica, verbal e ainda achar que a violência se justifica, quando Jesus disse que deveríamos “perdoar setenta vezes sete”, que os “mansos herdariam a terra”, e que deveríamos amar os próprios inimigos? E se ele próprio não usou de violência, mas perdoou toda a violência recebida; se deu a outra face e morreu, pedindo que Deus perdoasse seus algozes?

Como pode um cristão lutar pelo poder, trapacear, corromper-se, aviltar-se, para se sobrepor ao próximo, espezinhando quem a ele se interponha, se Jesus disse que “veio para servir e não para ser servido” e que “quem quisesse ser o maior, que fosse o servo de todos”? Se ele, que muitos cristãos consideram como o próprio Deus, e nós, espíritas, consideramos como um Espírito perfeito, veio ao mundo, como filho de um carpinteiro, viveu sem poderes e morreu perseguido pelos poderosos?

Como pode um cristão se esfalfar, se atirar a uma luta insana, explorando outros seres humanos, seus irmãos, se corromper, vender seus valores, trair sua pátria, pisar em todos os princípios morais, para acumular dinheiro, para possuir o excesso, quando a muitos falta o necessário, se Jesus disse ao jovem rico que o procurou para segui-lo, que desse todos os seus bens aos pobres, acrescentando em seguida, que seria mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus? E se ele próprio, nascido na pobreza, dizia não ter uma pedra onde encostar a cabeça?

Como pode um cristão desprezar uma criança, fechar o ouvido à sua voz, desvalorizando a infância, negligenciando-a e tantas vezes abusando e usando de vara e violência (como querem os que seguem mais o Velho Testamento do que Jesus), se o Mestre disse “vinde a mim as criancinhas, porque é delas o Reino dos Céus”?

Como pode um cristão ser machista, desrespeitando a igualdade de direitos das mulheres, explorando-as, olhando-as como objeto, usando de violência física ou psicológica contra elas, se Jesus, num tempo em que um rabino (como até hoje entre os rabinos ortodoxos) nem sequer podia encostar numa mulher, deixou que Madalena lhe tocasse, honrou-lhe com a primeira aparição em Espírito, acolhia em seu círculo mulheres, consideradas de má vida, ou mulheres de família, incluindo-as em seus ensinos (como fez com Marta e Maria, as irmãs de Lázaro ou com a samaritana do poço de Jacó, aliás multiplamente discriminada, por ser mulher, por ser samaritana e por ter tido vários maridos…)?

Enfim… como pode um cristão ser tão contrário a todos os ensinos de Jesus?

E como podem nações inteiras, formadas sob a égide do cristianismo, explorarem outros povos, promoverem a guerra, atacarem os mais fracos, dominarem outras nações, exercerem a tortura e matança, ignorando a fome, a injustiça e a marginalidade em que vivem inúmeros povos em todos os Continentes?

Como podem nações que têm suas leis inspiradas na igualdade e fraternidade, que beberam nas fontes do cristianismo, que assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que nada mais é do que uma carta laica com uma forte herança cristã, infringirem diariamente suas próprias leis e pisotearem a cada instante essa Declaração?

E agora, como pode um povo como o brasileiro, cujas pesquisas revelam que 99% acredita na existência de Deus, de repente estar possuído dessa fúria selvagem, digladiando-se mutuamente, cuspindo ódio e contaminando até mesmo as crianças?

Não posso me eximir de pensar tudo isso nessa Páscoa!

Parece que a voz do Mestre nos conclama de novo à mansuetude, à compaixão (mesmo com aqueles que consideramos que erraram), ao “não julgueis para não serdes julgados”, ao perdão incondicional e ao amor, acima de tudo!

Parece que a fera que dorme em nós ainda pode ser despertada por uma propaganda maciça, por uma hipnose coletiva, por uma histeria popular – como foi feito na Alemanha nazista ou na Itália fascista, apenas para citar duas situações históricas muito emblemáticas desse processo em que se acorda o monstro, escondido no inconsciente coletivo.

Isso significa o quê? Que ainda não transcendemos as sombras que habitam em nós, que nossa adesão aos valores cristãos é superficial, é fraca, ainda não conseguiu transformar totalmente a fera em ser humano.

Paremos um instante, respiremos fundo e analisemos a situação. Estamos mergulhados num comportamento de massa, irracional e muitos destilam ódio. Paremos antes que seja tarde e lembremos de Jesus! Pode parecer piegas falar assim: mas não é Jesus, que católicos, evangélicos e espíritas dizem seguir? E que mesmo ateus admiram?

Então, não há solução, nem política, nem social, nem econômica, sem os valores essenciais que Jesus ensinou e exemplificou e esses valores são justiça, igualdade, desapego, desprendimento, humildade, compaixão… enfim, o que todos sabemos já há muitos séculos, de cor e salteado, mas que a maioria ainda não teve coragem de colocar em prática.