Arquivo do mês: março 2020

Cartas sobre a não violência (4) em tempos de Coronavírus

2B350A7E1FCD9EF3A59E38574C73511A474D_cooperativa

As revoluções armadas redundam sempre em ditaduras, portanto há uma imposição de uma certa ordem social e novas relações de produção, eliminando-se os que não concordam ou os que faziam parte da ordem anterior. Ocorre que as pulsões humanas de ganância, dominação e poder permanecem intactas naqueles que promoveram e comandam a nova ordem. Assim, temos os privilégios do partido dominante, a tortura e o massacre dos opositores e outras desgraças tão antigas quanto a humanidade. Se as revoluções foram historicamente necessárias, para ensaios de novas formas sociais, e mesmo como manifestação legítima contra as injustiças de um sistema, rapidamente elas degeneraram e praticaram atrocidades idênticas aos regimes que depuseram.

Com isso, queremos dizer que precisamos finalmente achar novos caminhos de mudança social e de abolição das estruturas injustas e violentas que mantêm a maior parte da humanidade sob a canga da dominação e da pobreza. Soluções mais duradouras, porém mais difíceis, mais profundas e mais criativas.

O primeiro e mais importante caminho – e digo isso como educadora, que se dedica a essa missão há mais de 30 anos – é justamente a educação. Mas entendendo educação como um processo amplo de abertura de consciência, de leitura crítica do mundo, de desenvolvimento ao mesmo tempo de talentos individuais e de espírito comunitário e cooperativo. Não estou me referindo à educação para submeter o cidadão ao mercado de trabalho. Mas à educação que emancipa, empodera e desperta a sensibilidade, as emoções positivas de amor e fraternidade, os princípios necessários de justiça e igualdade.

Sei que essa educação encontra fortíssima resistência no sistema, pois o sistema usa as instituições educativas (a partir da família) como forma de moldar o povo para servir aos seus interesses, seja qual for o poder dominante – a Igreja fez isso, o capital faz, os Estados totalitários à direita e à esquerda fazem. Por isso, a nossa militância deve ser contínua, incansável, criando espaços para crianças, jovens e adultos, onde essa educação de emancipação seja construída e cultivada.

O segundo e igualmente importante caminho são os processos de terapia pelos quais todos os seres humanos deveriam passar: para descontruir o que ficou de marca negativa em sua própria educação; para saber lidar com as próprias emoções e fazer uma busca de autoconhecimento e, assim, se tornar um ser humano minimamente sociável, equilibrado que não saia por aí matando, competindo com o outro para eliminá-lo, batendo em mulher ou cometendo feminicídio (no caso dos homens); que entenda que a busca desenfreada por poder e dinheiro é uma forma de compensação burra e destrutiva para alguma frustração sexual ou emocional…

O terceiro caminho, que aponto aqui, que deve interagir com os outros dois, são as ações comunitárias, as formas de organização social livres do Estado e livres do poder do capital. Ou seja, é o povo se organizando, criando uma economia independente, produtiva e igualitária. Cito aqui um exemplo concreto disso no Brasil, que é o MST: um movimento que não usou de revolução armada (ou seja, não saiu por aí matando latifundiários, aliás, muitas vezes, foram mortos por eles), mas usaram de ações de invasão, assentamento, escolas, e depois se tornaram em alguns pontos do Brasil, produtores agrícolas cooperados. Nesse ano, de 2020, por exemplo, eles anunciam a colheita de 15 mil toneladas de arroz orgânico, mantendo-se como o maior produtor desse setor na América Latina. Isso é ação revolucionária pacífica.

Outro exemplo, é o movimento que está sendo convocado pelo Papa Francisco, a Economia de Francisco e Clara, cujo encontro seria por esses dias em Assis, mas que foi adiado para novembro, por causa do Corona. Trata-se de levantar ideias, incentivar projetos, apoiar comunidades que estejam nesse espírito cooperativista, sustentável e ecologicamente engajado.

O caminho ainda que desejo acrescentar é o de uma espiritualidade crítica. O que significa isso? É a abertura para a transcendência, para a dimensão espiritual da vida, com a crítica contundente aos que exploram a fé, aos que usam das instituições religiosas, para dominar, abusar e submeter os adeptos. Inspirar-se nas grandes tradições espirituais da humanidade traz esperança, conforto e solidez em nossas ações. Mas é preciso que nos imunizemos contra aqueles que usam as religiões para os fins mais violentos possíveis.

Tudo isso, para alguns, à direita ou à esquerda (pois a violência dos extremos se toca), pode parecer utópico e distante. Podemos sim considerar que a humanidade anda muito devagar em sua busca de soluções amplas, profundas e fraternas para um mundo de exploração e injustiça. Mas sendo a lentidão de fato angustiante, acontece de repente um Coronavírus, provocando uma crise tão ou mais angustiante na saúde, na economia, no ordenamento social e internacional. Para mim, como espírita, a dor é um processo às vezes necessário e pedagógico. Então, a crise é nossa grande oportunidade de aprendizado de novos paradigmas de vida. Nessa crise, vamos identificar muito bem aqueles que se importam minimamente com o próximo e os que apenas querem salvar a própria pele; vamos tomar consciência das prioridades existenciais da nossa vida; vamos constatar o quanto um desaceleramento desse sistema enlouquecido vai fazer bem para a natureza… Organizemo-nos, pois, entre os que acreditam na igualdade e na paz, na cooperação e na solidariedade, fazendo firme (não violenta) oposição aos parasitas, sacudindo as estruturas arraigadas da exploração, com a força do amor.

Artigo publicado no Jornal GGN na coluna Espiritismo Progressista, dia 23/03/2020

 


Cartas sobre a não violência (3)

jesus-cleansing-temple

Anunciamos na semana passada que iríamos refletir sobre a questão: Jesus era mesmo a favor da não violência?

Tolstoi e Gandhi, ao criarem o movimento da resistência passiva, se inspiraram diretamente no Sermão da Montanha. Será que estavam equivocados, ao interpretar Jesus como um pacifista?

No mundo antigo, entre judeus, romanos e gregos, que se saiba, nunca houve uma proposição ética de se perdoar e amar os inimigos, de se dar a outra face, de se oferecer em martírio, ao invés de se pegar em armas. Todo o mundo antigo se pautava, no Oriente e no Ocidente (talvez com a exceção de alguns discípulos de Buda) na ideia de que a honra deveria ser lavada em sangue. De que perdoar o inimigo era fraqueza e covardia. Aliás, o perdão jamais foi uma virtude sequer mencionada pelos antigos. Platão, em sua República ideal, coloca a classe dos guerreiros como guardiões da cidade. As virtudes, proclamadas por Platão e seu discípulo Aristóteles, eram a justiça, a temperança, a coragem e a prudência. Nada de fraternidade, amor, perdão… tudo isso é cristão – aliás, contra essas virtudes cristãs, Nietzsche vai bater seu martelo, considerando-as de maneira muito grega, como próprias de escravos.

Mas foi justamente essa uma das principais revoluções éticas de Jesus: colocar o amor como antídoto do ódio, o perdão como meio de resolução de conflito.

Outra revolução foi a ideia de igualdade. Hoje, quando defendemos uma Declaração Universal dos Direitos humanos, baseados na ideia de que todos e todas têm iguais direitos, apesar da laicidade desse documento, estamos assentados numa tradição cristã. Embora as Igrejas cristãs nunca tenham cumprido essa ideia de Jesus, incorporando em suas instituições tanto a violência, quanto o patriarcado, quanto a profunda divisão de classes… Jesus foi aquele que inaugurou a ideia de igualdade, que partilhou com as mulheres o pão e o ensino, enquanto os gregos, tão civilizados e criadores de tantas conquistas culturais, trancavam suas esposas e filhas nos gineceus e mantinham escravos. Os romanos, com seu Direito que até hoje deixou marcas no Ocidente, tinham em sua lei o pátrio poder de, inclusive, matarem suas mulheres e seus filhos. Jesus foi aquele que se dirigiu a judeus e a romanos, para escândalo dos judeus. Jesus foi aquele que falou com as crianças, para escândalo dos próprios discípulos. Jesus foi aquele que inibiu que se apedrejasse a pecadora.

Espanta-me que os estudiosos contemporâneos das escrituras, embora tenham muito progredido em apontar como se constituíram os Evangelhos, como se formaram os dogmas, como se amalgamaram as mensagens dos primeiros apóstolos com as tradições pagãs e com as estruturas políticas do Império Romano, não reconhecem como deveriam a originalidade ética de Jesus. Essa foi uma contribuição importante de Kardec com o Evangelho Segundo o Espiritismo, onde ele focou apenas os valores éticos propostos por Jesus. Hoje, quanto mais se despe Jesus dos seus aparatos mitológicos e se quer apreender o Jesus histórico, mais se pretende descrevê-lo apenas como um judeu milenarista de sua época, em luta contra o Império Romano ou esperando o advento próximo do Reino. Exemplo dessa interpretação milenarista está nas obras, em vários aspectos muito pertinentes, de Bart Ehrman.

Por que então teria sobrevivido Jesus a seu tempo, à sua região? Se fosse apenas um profeta zelote, interessado em derrubar o Império romano, ou um milenarista à moda dos essênios, à espera imediata do reino? De onde teria surgido essa ética tão insólita no mundo antigo: uma ética de amor e não-violência, de perdão e misericórdia?

Historicamente não se encaixa um homem judeu naquele contexto, ensinando algo que nunca foi dito… Para os cristãos tradicionais, tratava-se de uma pessoa divina; numa explicação hindu, poderia tratar-se de um avatar; para os espíritas, Jesus é um espírito elevado, que já atingiu um nível de perfeição acima dos seres humanos. Ainda um ateu pacifista pode muito bem aceitar a ideia de que se tratava de uma pessoa fora da curva, fazendo história, de maneira singular e inédita. O argumento sinuoso de que o Jesus histórico, revolucionário armado, revoltoso contra Roma, tenha sido domesticado historicamente, parece sem referências concretas, mas apenas especulações de quem quer achar o apoio do Cristo para a violência.

Pode-se perguntar: ele não expulsou os vendilhões do templo? Sim, rebelou-se contra a exploração da fé. Foi duro contra os fariseus e isso nos mostra como a não violência não é assentimento da violência, da exploração e da opressão.

Mas a mensagem de Jesus foi uma mensagem universalista, dirigida ao ser humano e não apenas a uma parcela, classe ou gênero… Ele pretendia a salvação, a redenção ou, interpretado de forma diferente, a iluminação e evolução de todos e todas. Do pobre e do rico, do homem e da mulher, do romano e do judeu, do senhor e do escravo.

Assim entendeu Gandhi, que ao lutar pela liberdade da Índia, não exercia o ódio contra os ingleses (e ele tinha motivos de sobra para um ódio fervoroso), mas queria tocá-los e lhes dar uma lição de justiça e fraternidade. Ao mesmo tempo, entendia que seus compatriotas, embora vítimas da dominação inglesa, também exerciam eles próprios a opressão das castas, sobretudo em relação aos intocáveis, aqueles que estavam fora de todas as castas e assumiam os trabalhos sujos da sociedade. O processo de Gandhi foi o de se unir aos intocáveis, fazendo os serviços considerados impuros,  que eles eram obrigados a assumir. Não se considerava com moral para lutar contra o colonialismo inglês, se ele próprio participasse da opressão interna de seu país. Nesse duplo movimento, Gandhi mostrava que a violência está entre opressores e oprimidos e que precisamos despertar uma consciência de irmandade em todos os membros da sociedade humana.

A prática da não violência está comprometida a acabar com qualquer relação de opressão e violência e não usar novas modalidades de coerção, para supostamente acabar com a violência estrutural da sociedade.

Por isso, Jesus dizia que o reino de Deus está dentro de nós – dos judeus e dos pagãos; dos homens e das mulheres; dos ricos e dos pobres; dos ladrões e das prostitutas; dos poderosos e das crianças… é preciso acordar esse reino nos corações e não eliminar os que andam sonolentos, inconscientes, gritando e ferindo, enlouquecidos. Isso não significa que não devamos nos opor com todo o engajamento possível às violências, às injustiças, ao extermínio mesmo de seres humanos, pertencentes a esse ou aquele grupo. Derrubemos as mesas do templo, com o mesmo chicote de Jesus. Mas ele não matou os mercadores.

Entretanto, esse caminho da não violência exige mudanças profundas na consciência e na ação de seus praticantes. É o que veremos na próxima carta.


Cartas sobre não-violência (2)

jesus-christ-divine

 

Continuamos aqui as reflexões sobre a não violência, iniciadas na semana passada. Retomando a partir de Jesus, já que é a referência principal dos cristãos, que supostamente são a maioria em nossa sociedade, em suas diversas denominações. Em nome de Jesus, tanta violência já foi cometida e continua sendo propagada e aplicada, que parece importante decifrar sua mensagem.

Os cristãos, em sua maioria, não aceitaram a não violência de seu mestre. Desde os primeiros séculos, promoveram perseguições entre eles mesmos, sem mencionar a virulência contra os pagãos e os judeus, assim que conseguiram se estabelecer como religião aceita no decadente Império Romano. Divergências teológicas provocavam brigas armadas; catequese à força implicava e implica ainda em destruição de outras formas de crença (dos pagãos dos anos 400 às crenças indígenas e afro-brasileiras da atualidade); conluio indecente entre poder religioso e poder do Estado – desde Constantino ao nosso (des)governo atual. Muito ilustrativo é o filme Ágora (ou Alexandria),  em que se narra a história de Hipátia, uma filósofa e matemática, que foi trucidada por cristãos, no ano de 415. Apesar de algumas imprecisões históricas, o filme reflete bem o clima da época.

Ora, os cristãos nunca levaram a sério a mensagem de amor, perdão, fraternidade e paz propagada pelo Mestre que dizem seguir.

Por isso, o modo não violento de agir nunca foi experimentado no mundo, e isso inclui Ocidente e Oriente (e me parece que no caso no Oriente, Buda também tinha uma postura de não violência, pela sua ênfase na compaixão). Todos os governos, todas as empreitadas, todas as resoluções de conflito e toda a estrutura social (seja escravagista, feudal ou capitalista), sempre se deram na base na violência, do morticínio, da opressão, diga-se de passagem, no enquadramento do patriarcado. Esse mundo violento e opressor que conhecemos é um mundo governado pelos homens, que já se constituíram desde a pré-história, como guerreiros. Raras sociedades tiveram mulheres guerreiras.

É factível pensarmos em mudar isso? Será ingenuidade querer transformar a espécie humana, gerada na luta pela sobrevivência, segundo a visão de Darwin, e mantida historicamente na luta de classes, segundo a perspectiva de Marx, carregando sempre no inconsciente, um impulso cego de destruição, segundo a visão de Freud?

Desejamos que sim, esperamos que sim, acreditamos que sim. É possível, necessário, urgente… mudarmos o padrão de comportamento violento, que começa nas microestruturas familiares e escolares e se estende aos impérios e às nações…

Se alguns seres humanos se propuseram e conseguiram agir nesse sentido, todos podemos, se acreditarmos nesse caminho e trabalharmos por ele. Claro que o pressuposto de uma natureza humana que contém uma centelha divina, um potencial crístico ou búdico, ajuda a nos enxergar esse possível caminho.

Então, é preciso combater a injustiça, a exploração, a fome, as estruturas de poder, mas superando igualmente em cada um de nós a fonte de agressividade, ganância e sadismo. Se combatemos todas as estruturas injustas com mais violência e ódio, alimentamos em nós os mesmos impulsos que as geraram em primeiro lugar. Não existe a dimensão social sem a dimensão psíquica e vice-versa. Um grande autor como Erich Fromm, que fez um diálogo construtivo entre marxismo e psicanálise, demonstra bem esse ponto, ao analisar as origens do nazismo em seu brilhante livro O Medo à Liberdade.

Para combater um fascista não posso agir como ele, senão me torno igual a ele. Não podemos ser moles, permissivos, indiferentes, coniventes, medrosos. Temos que manter a coragem, a dignidade, a firmeza, a resistência, a desobediência, mas não podemos nos deixar tomar pelo ódio, pelo desejo de extermínio, pois estaremos coisificando o outro, tanto quanto ele nos está coisificando. Ao invés de nos deixarmos tomar pela sombra do ódio, temos que acender uma luz interna, que poderá um dia iluminar também o outro. Para mim, espírita, esse dia pode ser agora ou em próximas vidas.

Pode-se alegar então: devemos entregar o pescoço para o inimigo? Não. Toda defesa é necessária. Mas na luta armada, não se pode também morrer? Então, melhor a morte do martírio, que fecunda um mundo novo, do que a morte levando outros junto, que perpetua a guerra e a violência, num ciclo sem fim.

Para o pensamento masculino, patriarcal, aquele que se constitui na violência de ser macho predador,  essas ideias são ingênuas, fracas, indignas. Passados dois mil anos da mensagem de Jesus e mais de dois mil anos da mensagem de Buda, ainda ocidentais e orientais consideram que perdoar é desonra, é humilhação e falta de dignidade.

Na próxima carta-reflexão: Jesus foi mesmo a favor da não violência?

Publicado originalmente no meu blog Espiritismo Progressista, no Jornal GGN.