Arquivo do mês: agosto 2022

Diário da Mama 9 – A justa medida da potência

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Semanas se passaram e eu aqui sempre querendo voltar ao meu diário, mas estava sem forças. As químios vão se sobrepondo e o corpo vai ficando mais bombardeado, mais abatido, mais exaurido. A imunidade baixa, as infecções se sucedem e o desânimo toma conta. Já por duas vezes tive que adiar a data da infusão, por conta de infecções oportunistas. Faz parte. A boa notícia é que o tumor está diminuindo bastante.

Mas não é possível dizer que está tudo ótimo, porque não está. É estranho hoje como muitos só querem ouvir palavras de gratiluz e pensamentos positivos e não aguentam uma simples afirmação: não estou bem! Se ousamos dizer que está pesado, punk, difícil… logo aparecem aqueles encorajamentos de que vou vencer, de que vou ficar curada, de que vai passar. Está certo, a chance de cura é praticamente 100%, mas a travessia é penosa, para chegar lá.

É preciso saber ouvir que o outro está mal e simplesmente concordar que é difícil mesmo – só isso. Muitos fazem esse exercício de empatia e acolhimento, mas outros muitos não se adaptam à ideia de que há sofrimento e desfalecimento no caminho. Hoje, há uma tendência generalizada de se mascarar a dor, porque somos obrigados à felicidade diária nas redes sociais.

Entretanto, como toda dor traz aprendizagem, fico procurando extrair o que pode ser proveitoso nesse caminho, sem ideias punitivistas, que me façam procurar culpas presentes ou passadas para justificar o que estou enfrentando. A questão é o que se pode aprender. 

Acho que o que mais me martiriza nesse processo todo não é o mal-estar, as dores, a doença em si e o seu tratamento tão descompensador, mas o fato de me reduzir a energia, me paralisar as atividades do dia a dia, me sentir meia Dora ou um quarto de Dora e não a Dora inteira, com toda a potência que me é própria. Tenho que usar minha potência para me cuidar e superar o momento e não para produzir como estou acostumada, cuidar dos outros, como sempre cuido – apesar de não estar totalmente sem produção e sem ação.

E aí que entram as reflexões desses tempos. Lembro sempre de uma frase do meu mestre e amigo Herculano Pires, de que não devemos ter complexo de Deus. Estava ele se referindo a um dos atributos de Deus, que é a onipotência. Ora, muitas vezes, gostaríamos, sim, de ser onipotentes: arrancar o sofrimento dos mais amados, impedir as escolhas equivocadas de outros, consertar os problemas do mundo, trabalhar além dos limites humanos, num tempo sem tempo…E como não somos onipotentes, sentimos o gosto da impotência, frustrante, entristecedora.

Embora não sejamos onipotentes, somos sim potentes. Não podemos pretender a onipotência divina,  mas Jesus também disse que somos deuses. Ou seja, somos capazes de iluminar o caminho e criarmos beleza, amor e transformação. 

Eis o que é preciso, pois –  um meio caminho entre a sensação de impotência, que nos impede de avançar e a pretensão à onipotência, que nos esmaga por dentro.

Integrar-se na harmonia da vida, fazendo o que devemos, o que queremos, o que podemos, com inteira presença. E entregando a Deus Pai e Mãe, o conjunto da obra, a visão do futuro, a medida da eternidade, renunciando à vontade de controle. Uma diminuição necessária da ansiedade. 

Agir, parar, respirar, prosseguir, com calma e esperança, paciência e consistência. Doenças podem ser essas pausas necessárias e também podem ser consequência de um excesso de ação exaustiva. Mas também são simples contingências de um mundo cheio de venenos para o corpo e para a mente, numa estrutura social em que contrariamos o tempo todo nossa natureza orgânica e espiritual. A incidência absurda de câncer no mundo demonstra que estamos doentes coletivamente e isso se materializa em nossos corpos. 

E hoje, vou pegar uma poesia emprestada, da minha querida amiga Larissa Blanco – aliás ainda inédita, onde ela fala justamente desse mundo que queremos, em que não seja preciso mais sequer haver domingos. 

Aos domingos 

Quando um poema se abre: paragens

Tornam-se rarefeitas as fronteiras 

Entre o azul e o corpo

E a consciência nos oferta acolhida: 

Parecem corretas e nobres 

As nossas escolhas de vida. 

É neste instante 

Que despenca do meu semblante 

O fruto amargo,

Meu olhar opaco 

De quem muito conjectura

Finalmente descansa, desfruta 

E não mais censuro o avanço da cerca viva…

E dou-me conta do torpor que sinto

Ao ver o ser amado despido…

E lufadas de ar decolam do manjericão 

E transitam… 

Suavemente fecho os olhos 

– desisto de disputar com o Sol 

a minha retina –

E meus versos se põem a animar uma cena:

Os contornos de uma mulher que amamenta, serena. 

Imersa com sua prole 

Em um casulo de seda

Sob o teto morno de uma casa

Há pão sobre a mesa 

E uma aldeia espalhada pela sala. 

O futuro está abrigado 

Contra salteadores

Não há demandas para punhos cerrados

Não há extermínio dos mais fracos 

Nem sequer existem os domingos

Para cavar uma paragem

E garantir algum fôlego:

A vida já nasceu arejada,

Um poema pronto.

Larissa Blanco