Arquivo do mês: junho 2022

Diário da Mama 7 – Entre químios

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As pessoas que acompanham o Diário da Mama me perguntam por nova escrita, no justo desejo de saberem como estou passando. Nem relatei a segunda quimio e já estou às vésperas da terceira. O dia em que fiz a segunda, já duas semanas atrás, deslizou com suavidade e foi menos impactante do que a primeira. 

É algo palpável, quase concreto o quanto a oração nos carrega, para atraversarmos os mares bravios da vida. A nossa própria, a que fazemos do profundo de nossa fé e as que nos são endereçadas, nas asas de pensamentos amorosos, sinceros e potentes. Nessa segunda vez, fui acompanhada por minha outra Claudia amiga-irmã, a Gelernter. E nossas orações, ao som de Hildegard von Bingen, foram muito confortadoras durante o processo da químio. 

Nos dias que se sucederam, porém, embora de início me parecessem mais amenos, em relação à primeira, foram se mostrando cheios de novidades incômodas: a diabete destrambelhada (por causa da cortisona), taquicardia, episódios de pressão baixa, neuropatia nos pés, alteração de paladar, mas sobretudo, muito, muito cansaço. Um cansaço que não passa, descansando. Que me faz me arrastar entre o trabalho e a cama, entre o almoço e a rede, entre o trabalho e o sofá. Todo mundo com quem converso que já passou por isso, confirma a exaustão como sintoma incontornável da quimioterapia. 

O choque da químio nos tira de nós mesmos, de nossa energia vital, de nossa potência. É temporário, mas é estranho. Mais estranho para mim que sou um furacão de atividades… mas não será isso o necessário no momento, um repouso forçado, para algum tipo de aprofundamento da alma? 

Essa quinzena teve um ponto alto que não posso deixar de mencionar, porque revela o quanto a arte é terapêutica e vital: fui com todos os cuidados possíveis (para me prevenir de pegar Covid) a um concerto aqui em Bragança, em homenagem a Vinicius de Moraes, nosso poetinha querido. Orquestra Jovem de Bragança, a neta do Vinicius, Mariana, cantando, e ainda meus sobrinhos participando do coral infantil. Foi um deleite. Nesse dia, saí revigorada e o cansaço fugiu. Fui dormir às duas horas da manhã, depois de uma pizza com meu pai e amigos, e pulei da cama disposta, no dia seguinte. 

Hoje, estou me preparando para enfrentar a quimio de amanhã. É sempre imprevisível como será. Mas sempre posso contar com a música e com a prece, com os amigos desse lado e do outro lado da vida. 

 

A cada trecho da escalada 

Na montanha do tempo 

Uma fé esforçada 

Uma tênue mirada 

No topo da chegada. 

A cada dia, um dia 

A cada dor esguia 

Minha alma se recria… 


Diário da mama 6 – Acordando ao sol

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Arte de Erika Lourenço

Sábado de manhã, o sol entrando pleno pelas janelas da sala e eu me sinto eu mesma, como se tivesse acordado de um período sonambúlico, em que estava me procurando. Alívio, esperança nas luzes do dia.

Os dias que se sucederam à químio foram difíceis. Dores intensas de cabeça, tontura, enjoo (menos do que o esperado), cansaço extremo e uma intercorrência: uma gastrite aguda medicamentosa.

A sensação era de que tinham me jogado violentamente contra um muro e eu não conseguia voltar a mim, tomar prumo, saber o que estava acontecendo. Quase plenamente bem, só 8 dias depois. Mesmo assim, trabalhei, cozinhei (pelo menos duas vezes), fui a supermercado, farmácia… tive que levar meu pai ao hospital numa emergência (está tudo bem agora), mas repousei muito mais do que gostaria. O principal clamor de qualquer doença é esse: o corpo suplicando descanso, que em tempos normais ele não teria. Eis uma dura lição: não ouvimos nosso corpo. Eu às vezes finjo que ele não existe. E eis que que ele se impõe de maneira dolorosa. Vejam que falo do corpo em terceira pessoa, como se não fosse parte de mim. Faz parte. Mas penso de verdade que sou mais do que o corpo.

No meio do caminho desses dias pós químio, raspei a cabeça. Chamei o meu amigo cabeleireiro Marcus Wagner em casa (com medo do Covid voando pelo salão) e pedi a máquina 0. Por quê? Iria cair mesmo, não queria que meus fios já tão alquebrados escorressem pelas minhas mãos. Então me adiantei, pelo menos para manter o controle da situação. Comprei e desenterrei do armário lenços, boinas, turbantes… estou experimentando e fazendo disso um ensaio estético. Não se deve perder a classe, não se deve entregar os pontos – aprendi com minha avó, com minha mãe e meu pai.

Ao raspar a cabeça, senti-me irmanada com monjas e prisioneiras, e com outras tantas milhões de mulheres que passaram e passam por tratamento de câncer e não me senti nem só, nem entristecida. Uma etapa do processo, na esperança de que meus cabelos renasçam mais fortes, mais à frente. Como eu mesma.

Em toda a caminhada, estou sendo acompanhada por olhares amorosos, palavras acolhedoras, afetos profundos, ajudas inesperadas, presenças espirituais quase palpáveis… E constato como apesar dos pesares, há amor no universo, há empatia, há humanidade humana!

E hoje, nesse sábado ensolarado, em que me sinto muito bem, abastecida de amor, a poesia cabe mais do nunca.

Presenças

O sol é presença

Metáfora da luz

Escondida na vida.

É pertença na lida.

A vida, essa teia

Que se alteia

De afetos e trocas.

E quando a dor nos desloca

Nos provoca

Nos toca e retoca

Eis que o sol que ilumina

É a força divina

Que nos sublima.