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Diário da mama 5 – O corpo em luta

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Arte de Camila Soato

São 5 horas da manhã, quando escrevo esse texto, em noite dividida entre horas de sono profundo e momentos de incômodos aflitivos. O corpo reage ante o veneno injetado para combater o câncer.

Ontem foi o dia da minha primeira quimioterapia, iniciando o que os médicos chamam de fase vermelha, dois meses de ataque com duas drogas pesadas. O dia transcorreu da melhor maneira possível. Saí de Bragança Paulista cedo, dia ensolarado – graças a Deus o frio intenso passou – estava disposta e animada.

Almocei em São Paulo, para ir alimentada, como me recomendaram. E parti para as longas horas no AC Camargo. Cheguei às 12:30 e saí às 18:15. Minha amiga-irmã materna, Claudia Mota, me acompanhou em cada segundo, cheia de cuidados, mimos e suporte amoroso.

Não tenho palavras para louvar a competência e o humanismo desse hospital, onde meu pai já tratou durante 20 anos de um câncer nas cordas vocais e sempre teve o mesmo acolhimento. (Hoje ele está curado, em remissão desde 2018).

Passei pela consulta da oncologista clínica, que me explicou longamente todo o processo, todos os cuidados necessários – até com marcas de cremes e pasta de dente (infantil!) a serem usadas, respondeu uma lista de perguntas que levei por escrito. No final, pedi a ela que retirasse um momento a máscara e retirei a minha, para podermos nos ver de fato, rosto inteiro, sorriso aberto, num momento de encontro humano: Dr.ª Milena Shizue Tariki.

Das mãos dela, passei para o corpo de um técnico e várias enfermeiras que me examinaram, me cuidaram e me tutoraram no processo da químio – todas de uma delicadeza exemplar.

Um espanto sempre presente, que eu já conhecia no caso do meu pai, os médicos sabem e nem ligam. Tanto meu pai quanto eu temos pressão muito boa, 12/8. Basta estar no hospital para algum procedimento, embora estejamos aparentemente calmos, bem-humorados e sem aflições, a pressão dispara: a minha ontem estava 15/9. O nome disso é síndrome do jaleco branco.

E o dia foi transcorrendo, numa sala privativa, com vista linda, contemplando o dia ensolarado, com a selva de São Paulo à frente e as montanhas ao fundo, ainda garantindo que existe algo da natureza… Passou entre explicações e aplicações de remédios: anti-enjoo, cortisona, e por fim as ditas cujas. A primeira foi suave. Levei minha caixinha de som, presente do meu irmão para essa fase, e estava flutuando em vibrações de amor e de paz. Centenas de mensagens recebidas, de afeto sincero e palpável e preces de todas as religiões, que me embalaram o dia. Na segunda droga, tivemos que interromper na metade, pois a náusea e a tontura vieram. Para-se a químio, 20 minutos de dramim na veia, alívio, término da segunda dose. Quando veio o mal-estar, desliguei a música e recorri à respiração.

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Antes de sair, pregaram um aparelhinho em minha barriga, que vai disparar depois de 27 horas, uma substância para ajudar a não deixar a imunidade cair. Nesses primeiros dois meses, todas as vezes que aplicar a químio (ao todo 4 vezes) terei esse aparelho armado em meu corpo, que depois de disparar o remédio automaticamente, devo descartá-lo numa caixa e levar ao AC Camargo para incinerar. Tive, claro, a curiosidade de ler toda a bula do dito cujo no Google, e saber o quanto custa: uma módica quantia de 5 mil reais cada um!!! O valor de um só é muito mais do que eu pago pelo meu convênio mensal.

Saí zonza do hospital, enfrentei (sem dirigir obviamente) 2 horas de trânsito até em casa e cheguei para a sopinha feita pela Nena, uma pessoa que trabalhou comigo 10 anos, muito amiga e querida, com mão santa na cozinha, que quando soube do meu câncer se dispôs a vir ajudar nos dias em que eu precisasse. Estou cercada de todo amor possível.

Agora sim, a palavra certa e válida é gratidão (já escrevi que ando achando essa palavra muito desgastada: a pessoa recebe uma pequena informação ou um favor corriqueiro e a outra já vem com a profunda e vasta gratidão).

Reflexões do dia:

Apesar da intensa vivência emocional, física e espiritual do dia todo, não consigo e nem quero me desligar das questões sociais. Faço parte de um pequeno grupo privilegiado no Brasil, que terá acesso a esse centro de referência em oncologia. E as mulheres espalhadas pelo país afora que não terão esse mesmo tratamento? Durante anos, minha maior tensão financeira tem sido pagar o convênio, muitas vezes fiquei com ele suspenso, quase o perdi, lutei como leoa para continuar, porque ele salvou a vida de uma filha espiritual amada e porque precisava continuar o tratamento do câncer do meu pai. Muitas vezes pedi empréstimo em banco, para amigos, doações de familiares, que continuam me ajudando. Algumas vezes, aconteceram verdadeiros milagres de entrada de dinheiro em meses que estava a ponto do convênio ser cancelado. Num certo momento, em que não conseguia mais pagar, tentei transferir meu pai para o tratamento dele para o SUS no AC Camargo e tive o pedido negado.

Nos longos em que acompanhava meu pai no AC Camargo, muitas vezes me confortei pelo fato de que encontrava nas salas de espera, pessoas que estavam ali por convênios e pessoas que estavam pelo SUS, recebendo o mesmo tratamento.

Isso acabou. Pelo que ouvi dizer, o SUS praticamente não tem mais nada no AC Camargo. Nos últimos anos, com o avanço dos desgovernos neoliberais, as poucas conquistas que tínhamos (era preciso avançar muito mais) estão escorrendo como água entre os dedos do povo empobrecido e esquecido. E isso me dói nesse momento. Ainda mais numa semana em que recebemos a notícia de um projeto repulsivo de um grupo de militares de permanecerem no poder até 2035 e dois itens dos mais revoltantes é a extinção do SUS e da educação pública gratuita. Tenho o privilégio (esse convênio é a continuidade de algo que meu pai pagava há 30 anos quando trabalhava no mundo corporativo), mas não fico confortável em ter, sem que tantos não tenham.

Sinto gratidão por todas as circunstâncias e pessoas que me ajudaram a chegar até aqui e até um certo alívio por ter sido teimosa em lutar por isso, e sinto indignação, incômodo e mal-estar porque a maioria não terá o que estou tendo – e todos merecem ter.

* * *

Já são 6 horas da manhã: dor de cabeça, palpitação, glicemia alta, uma sensação de que engoli um cabo de guarda-chuva, em paz de espírito e reflexiva, eis meu relato do dia. Restará um espaço para um pouco de poesia?

Meu corpo se rebela

Em incômodos inquietos.

Mas abro a janela

Da alma tranquila.

E ao longe cintila

O amor de tantos afetos

De cuidados repletos.

O que apenas me revela

Que Deus é sempre por perto.


Diário da mama 4 – Anúncio do Calvário

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Será excessivo chamar de calvário a previsão de 5 meses de quimioterapia, depois cirurgia e depois rádio? Sei que há muita gente que passa por calvários mais longos, mais torturantes e que parecem sem fim, mas para mim, esse prenúncio me fez tremer nas bases. Assim foi a orientação da equipe do AC Camargo, depois da análise do meu caso.

Nessa semana, passei longas horas no hospital, entre consultas, exames e orientações. Saí carregada de papeis, com um calendário cheio para os próximos dois meses, não só para as aplicações de químio, mas também para profissionais da equipe multidisciplinar: nutricionista, psicólogo (apesar de já estar fazendo terapia por conta própria), endócrino, a enfermagem que acompanha a químio… tudo muito organizado, assertivo, acolhedor.

Mas também desanimador. Quando lemos e ouvimos sobre os efeitos colaterais da droga, agressiva, avassaladora, que vai fazer cair o cabelo, descamar a pele, abaixar a imunidade, que pode mexer com o intestino e o estômago, que pode causar neuropatia e até atacar o coração… meu Jesus Cristinho, é muito veneno sendo injetado em nosso corpo! E não há alternativa, à esperança de que esse ataque diminua o tumor e a operação possa ser menos invasiva e causar menos danos.

Mas o chão parece faltar. Racionalmente sabemos que nem todos os efeitos estarão presentes, que cada pessoa é uma pessoa (embora eu tenha o fator complicador da diabete), mas sempre nos perguntamos: e se eu for aquela pequena parte da estatística que teve a sequela mais grave?

E o chão parece faltar também em relação ao trabalho: será que darei conta de me cuidar, de descansar, de realizar tudo o que é inadiável e necessário para a minha sobrevivência?

Então é a hora da entrega, da confiança, da oração e do colo dos que nos amam. A onda de desânimo vem e depois se esvai. Vamos enfrentar no plural, porque tenho muita gente comigo, desse lado e do outro lado da vida.

O calvário se inicia dia 26 de maio e se até Jesus disse do Horto: “Pai, afasta de mim esse cálice, mas faça-se a tua vontade e não a minha”, então também posso me mostrar hesitante e vulnerável, lembrando que Ele está comigo e que milhões de mulheres, como eu, já passaram ou estão passando por isso… Estamos juntas.

Um instante

Um trecho da estrada escureceu

E assombra-me que a lua se escondeu.

Parece que a poesia se faz rala

E uma nesga de fel me avassala…

Que será que Deus quer comigo

Nesse instante fugaz de desabrigo?

Que há de certo num poema

Que na garganta se entala?

Fecho os olhos, respiro,

Procuro no alto da montanha

Um fôlego, um retiro

Que me acuda nessa dor tamanha…

E aí estás, coração divino,

Em que doce, me reclino…

Coração que se espraia no universo inteiro

Que é sólido, fagueiro,

Infinito luzeiro

Para inundar de paz

O minuto passageiro…