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Diário da Mama 11 – A cura e a chegada aos 60

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Esse é último Diário da mama que escrevo, porque alcancei a cura. Escrevo feliz, certa de que superei uma batalha, que afinal não foi tão difícil, e que depurei algumas das sombras que carregava na alma. A impressão é que elas se materializaram no câncer e com a cura do tumor, esvaíram-se também.

Toda doença talvez seja isso: acúmulos de mágoas, de emoções desencontradas, de excesso de luta, de estresse galvanizado… tudo isso desagua no corpo, se solidifica e acaba nos adoecendo. Não que devamos nos culpar por isso. Ao contrário, a doença pode ser catártica, curativa, regenerativa – se a encaramos de frente, se ouvimos sua voz, se olhamos para dentro. Mesmo se a morte seja o final do processo, também a morte pode ser cura e vida depurada. Morte não é fracasso, quando chegou a hora. É apenas um final harmonioso de quem viveu o que tinha que viver.

Mas não é esse meu caso, por enquanto. Ainda tenho vida aqui mesmo, pela frente, e muitos projetos a realizar. Fiz a cirurgia e não há mais nenhuma célula de câncer em mim – assim está atestado no laudo anatomopatológico. Quando li o resultado, invadiu-me imensa alegria, mesmo já sabendo que esse seria o final de todo esse processo, (apesar de provavelmente ter ainda de fazer radioterapia). Parece que atravessei uma etapa que me fortaleceu, que me conectou mais profundamente comigo, com Deus, com meus afetos, com as verdades essenciais da vida.

E esse sentimento de paz, de plenitude, de alcance, apresenta-se justo nesses dias, em que estou completando 60 anos de vida. 60 anos! Estou entrando na velhice!

Sagitariana, nascida dia 4 de dezembro, batizada de Dora Alice por meu pai, em dupla homenagem a Dorival Caymmi (Dora rainha do frevo e do maracatu… Doralice, eu bem que te disse…). Foi uma escolha certíssima. Adoro música, adoro Caymmi, adoro a Bahia.

Mas Incontri fui eu que escolhi, em homenagem à minha linhagem materna, meu bisavô André Incontri, minha avó Edera, minha mãe.

Chego aos 60, satisfeita com o que vivi até aqui, de consciência em paz. De nada me arrependo, de tudo aprendi, não tenho nostalgias, gosto sempre mais de hoje do que de ontem e não temo o amanhã. Entregar-se ao fluir da existência é o melhor aprendizado para não sermos excessivos no controle, iludidos com onipotência e irmos nos deixando surpreender pela vida que, sim, às vezes traz boas notícias e presentes divinos. E quando nos dá solavancos, apenas nos fortalece.

Enquanto descansava das quimioterapias, enquanto estou repousando ainda da cirurgia, refiz planos, idealizei livros e projetos, pensei os próximos 20 anos – tudo o que quero completar para deixar um legado útil e consistente. E depois, aí sim, virá a Senhora morte, libertadora, para me levar nas asas dos ventos para um além de refazimento e reencontros.

Já vivi pelo menos ¾ da vida. E daqui para frente, acho que não tropeço mais em detalhes, em dores, em dissabores. Guardarei a serenidade que já era minha e que se fez mais sólida.

Um viva à vida! Um obrigada e todas e todos (ainda não me soa português bom, o atual “todes”), pelas preces, pelas vibrações, pelo amor, pela torcida. E acima de tudo, gratidão a Deus, pai nosso e mãe nossa de cada dia!

Minha mama está inteira, pouco invadida, pequena cicatriz e sem nenhuma dor, nem tumor! Amém!

Esfalfa-nos a vida

Em luta renhida

Mas depois traz remanso

Aconchego e descanso…

Das sombras guardadas

Renova as jornadas

Das lágrimas frias

Refundem-se alegrias.

Tudo se transmuta

Transcende, se sublima

E a alma que se firma resoluta

Sem fuga da luta

Vai e carrega o fardo acima.

Invadem os mares

Revoltos, cinzentos.

Depois a manhã em altares,

ensolarados ventos…

Assim, a sábia vida,

Tessitura divina,

Rendilhando-nos a subida

Refinando-nos a sina

Ensinando que, embora,

Tanto esmague e nos doa

Tudo refulge em aurora

Tudo em nós aperfeiçoa,

Tudo em bem nos ressoa…


Diário da mama 6 – Acordando ao sol

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Arte de Erika Lourenço

Sábado de manhã, o sol entrando pleno pelas janelas da sala e eu me sinto eu mesma, como se tivesse acordado de um período sonambúlico, em que estava me procurando. Alívio, esperança nas luzes do dia.

Os dias que se sucederam à químio foram difíceis. Dores intensas de cabeça, tontura, enjoo (menos do que o esperado), cansaço extremo e uma intercorrência: uma gastrite aguda medicamentosa.

A sensação era de que tinham me jogado violentamente contra um muro e eu não conseguia voltar a mim, tomar prumo, saber o que estava acontecendo. Quase plenamente bem, só 8 dias depois. Mesmo assim, trabalhei, cozinhei (pelo menos duas vezes), fui a supermercado, farmácia… tive que levar meu pai ao hospital numa emergência (está tudo bem agora), mas repousei muito mais do que gostaria. O principal clamor de qualquer doença é esse: o corpo suplicando descanso, que em tempos normais ele não teria. Eis uma dura lição: não ouvimos nosso corpo. Eu às vezes finjo que ele não existe. E eis que que ele se impõe de maneira dolorosa. Vejam que falo do corpo em terceira pessoa, como se não fosse parte de mim. Faz parte. Mas penso de verdade que sou mais do que o corpo.

No meio do caminho desses dias pós químio, raspei a cabeça. Chamei o meu amigo cabeleireiro Marcus Wagner em casa (com medo do Covid voando pelo salão) e pedi a máquina 0. Por quê? Iria cair mesmo, não queria que meus fios já tão alquebrados escorressem pelas minhas mãos. Então me adiantei, pelo menos para manter o controle da situação. Comprei e desenterrei do armário lenços, boinas, turbantes… estou experimentando e fazendo disso um ensaio estético. Não se deve perder a classe, não se deve entregar os pontos – aprendi com minha avó, com minha mãe e meu pai.

Ao raspar a cabeça, senti-me irmanada com monjas e prisioneiras, e com outras tantas milhões de mulheres que passaram e passam por tratamento de câncer e não me senti nem só, nem entristecida. Uma etapa do processo, na esperança de que meus cabelos renasçam mais fortes, mais à frente. Como eu mesma.

Em toda a caminhada, estou sendo acompanhada por olhares amorosos, palavras acolhedoras, afetos profundos, ajudas inesperadas, presenças espirituais quase palpáveis… E constato como apesar dos pesares, há amor no universo, há empatia, há humanidade humana!

E hoje, nesse sábado ensolarado, em que me sinto muito bem, abastecida de amor, a poesia cabe mais do nunca.

Presenças

O sol é presença

Metáfora da luz

Escondida na vida.

É pertença na lida.

A vida, essa teia

Que se alteia

De afetos e trocas.

E quando a dor nos desloca

Nos provoca

Nos toca e retoca

Eis que o sol que ilumina

É a força divina

Que nos sublima.