Como não transformar indignação em ódio?

PM e Gandhi

Partilhei hoje na minha página do Face uma foto de um membro da polícia militar com a arma em punho diante de uma estudante desarmada, em posição pacífica, durante a guerra declarada pelo Governo do Estado aos alunos que reivindicam a manutenção de suas escolas, no movimento “Não fechem minha escola”. Ao partilhar essa foto e comentar brevemente minha indignação diante da cena, vi-me arrebatada numa discussão desenfreada na minha própria página. Mantive-me calada, mas tenho ficado amargada com o nível de agressividade, conservadorismo, analfabetismo político reinantes no momento presente. E toda vez que manifesto qualquer posição, vejo-me enredada numa trama de contenda, de vibrações desencontradas, que me afetam por dentro.

Por isso, a reflexão de hoje é sobre uma questão fundamental: como manter a paz íntima diante das gritantes injustiças do mundo? Como exercitar a indignação (necessária, pois até Jesus a manifestou diante dos fariseus que exploravam o povo) sem se deixar escorregar para a ódio e para o asco? Como manter o olhar lúcido e crítico diante das estruturas profundamente injustas da sociedade, diante da falta de ética, diante da negligência com o ser humano, sem afundar-se num desânimo existencial, que nos faça parar deprimidos à beira do caminho? Como, enfim, atuar no mundo, para transformá-lo, com suficiente amor no coração, mas sem a pieguice e a apatia dos que aceitam tudo de cabeça baixa?

Lembro-me aqui de três figuras que muito me inspiram na vida e que viveram momentos críticos nesse sentido. Um foi Pestalozzi. Condecorado pela Revolução Francesa, por suas ideias progressistas para a melhoria das condições do povo e de sua educação, ele escreveu um livro intitulado Sim ou Não?, que pretendia responder se ele era contra ou a favor daquela Revolução sangrenta. Ora, claramente, ele se manifesta contrário à violência, mas a favor das reivindicações populares, diante da opressão em que vivia o povo. Hoje, é verdade, a análise marxista da História considera a Revolução Francesa uma revolução burguesa, que usou as classes populares a seu favor. Na época, na compreensão de Pestalozzi, era algo que brotava sobretudo legitimamente das entranhas do povo. Ele não aprovava, nem justificava a violência, mas compreendia-a, como uma reação inevitável à opressão. Numa outra obra sua, Minhas Indagações sobre a marcha do desenvolvimento da espécie humana, Pestalozzi desenvolve toda uma teoria, que antecede em alguns aspectos a psicanálise, apontando a repressão dos instintos das massas como uma das causas de explosão de guerras e revoluções. De qualquer forma, ele considera que uma educação integral, como a que ele propunha, deveria despertar a divindade interior dos indivíduos, motivando-os a agir autonomamente, sem repressão, no sentido da fraternidade e do bem-estar de todos.

Kardec, no Livro dos Espíritos, na questão 783, da mesma forma que seu mestre Pestalozzi, admite a necessidade das revoluções sociais, olhando a História de uma perspectiva no tempo: 

“O homem não pode ficar eternamente na ignorância, porque deve chegar à meta marcada pela Providência: ele se esclarece pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram pouco a pouco nas ideias, elas germinam durante séculos, depois, de repente, estouram e fazem ruir o edifício carcomido do passado, que não está mais em harmonia com as necessidades e aspirações novas.

O homem muitas vezes vê nessas comoções apenas a desordem e a confusão momentânea que o atingem em seus interesses materiais; aquele que se eleva pelo pensamento além do pessoal, admira os desígnios da Providência, que do mal faz surgir o bem. É a tempestade que purifica a atmosfera, depois de tê-la agitado.” (Tradução minha)

Entretanto, foi no século XX, que um elevado espírito, aliás chamado Mahatma (grande alma), deu um exemplo maravilhoso de uma atuação política, para transformação social, na luta contra a injustiça, por caminhos da não-violência, comprometido ao mesmo tempo com seu próprio aperfeiçoamento espiritual e com a elevação moral do povo. Gandhi foi passo a passo, como conta em sua autobiografia, construindo uma forma de atuar no mundo, para mudá-lo, sem render-se ao ódio, ao desespero e sem a alienação, muitas vezes característica, de alguns líderes espirituais. Unindo fé e política, autoconhecimento com a trilha da não-violência, ele deixou a mensagem de que só conquistamos a devida força moral, social e mesmo política (num sentido muito amplo e não partidário) se conquistarmos ao mesmo tempo a nós mesmos. Mas ele também se deparou com o rugir das paixões, o estouro da violência, da guerra civil, de seus compatriotas, pagando com a vida o seu empenho de dialogar com todos e não odiar ninguém.

Fica porém esse aprendizado para nós: guardemos serenidade nas lutas justas em que nos empenhemos no mundo. A oração é uma força essencial para isso. Assim nos ensinaram Jesus e Gandhi. Cuidemos de nosso mundo íntimo, para não nos rendermos ao ódio, que é um grau degenerado de indignação. E enchamo-nos de compaixão para com todos. Porque todos precisam dela.


15 respostas para “Como não transformar indignação em ódio?

  • Deise Toledo Carrijo

    Lindo Dora. Uma lembrança importante para todos – A PRECE! Nestes momentos tão truculentos do nosso sofrido BRASIL .
    Beijo
    Deise

  • Thiago

    Sábias palavras Dora,

    Interessante o quão conflitante e desafiador é o bom combate, porém muito necessário. Ao receber a notícia do aceite de impeachment por parte de Eduardo Cunha e vê-lo falar em sua página de que “a função de um deputado é servir o povo…” Senti uma imensa vontade de chamá-lo de hipocrita, mas resolvi calar pois sei que não falaria nada que se aproveitasse. Eis o desafio na busca pela dose que diferencia o remédio do veneno.

  • Leonila Góis

    Concordo com você Dora. Só não podemos ficar indiferentes. A prece é, realmente, um recurso que devemos utilizar. Obrigada.

  • Claudia

    Muito apropriado o texto. Procuremos viver com destemor, cultivando o afeto e a compaixão pelos outros, procurando sempre ver lado bom, o que é útil e belo em tudo.
    Cada um deve fazer a sua parte para que o todo se complete.
    Nesse tempo de crises e mudanças a força de nossas preces certamente contribuirão para a harmonia do universo.
    Obrigada, Dora, por nos lembrar disso!

  • Jeanette Stedile

    Dora, admiro seu trabalho, porém concordo parcialmente com o ponto de vista da ocupação das escolas estatuais. Lendo seu texto acima, vc cita a pergunta do livro dos espíritos 783. Vejo a resposta pelos dois lados , dos estudantes e da secretaria da educação. Está sendo implantada uma mudança e toda mudança causa dor, causa perda e ganhos. A secretaria tem por obrigação de oportunizar as mudanças para que ocorra a evolução . Por parte dos alunos, remetendo-nos ao texto de kardec, querem permanecer no passado , no edifício carcomido. Não estou a favor e nem contra, porque os dois lados têm suas razões . O fato de estarmos acomodados não permite que raciocinemos. Em 1996 , em Jundiai, em virtude da municipalização , ocorreu um processo parecido. Na época trabalhava com uma 3ª série (4º ano hoje). A sala era compartilhada com alunos pré-adolescente e adolescentes ,no período da tarde , e com adultos à noite. Nem o alfabeto eu podia deixar exposto porque no dia seguinte estavam danificados . A partir da restruturação, os alunos puderam expor seus trabalhos e , nos três segmentos, observou-se avanços no processo pedagógico . Sou pedagoga e meu objetivo é sempre o melhor para o aluno. Espero que o diálogo na paz seja o canal para a resolução desse impasse. Obrigada pela atenção e espero ter-me feito entender. Abraços

  • Pedro Pail

    ÓTIMA REFLEXÃO !!! É POR ISSO QUE NÃO GOSTO DE BRIGADIANOS …. COM ARMAS DE FOGO NA MÃO, SÃO TODOS VALENTES, MAS SEM ELA, NÃO PASSAM DE COVARDES, METIDOS A BESTAS, E CEGOS EM SUAS ATRIBUIÇÕES !!! Date: Thu, 3 Dec 2015 02:32:39 +0000 To: pedropail@hotmail.com

  • Roseli Marques Shigematsu

    É isso…temos que nos sustentar vibracionalmente, sem perder a capacidade crítica diante dos fatos, na esperança de que algo novo e bom esteja brotando das entranhas de cada um com tudo que está acontecendo.Um abraço querida Dora.

  • Valquiria Alo

    Dora, infelizmente não tive tempo para ler todo o seu texto, mas de cara lhe pergunto, voce participou da situação fotografada ou apenas esta fazendo juizo de valor sobre a mesma?

    – pois quero saber se de fato as estudantes estavam lá pacificamente? como relatou.

    -tenho para comigo que antes e qualquer pré- julgamento temos que saber a verdade dos fatos, ou seja o que de fato aconteceu e não apenas diante de uma foto, video, cena, fazermos juizo de valor, até porque a verdade não é absoluta , e sim relativa, pois cada um tem um criterio de verdade. Portanto, sem qualquer julgamento de merito, não pre-julguemos.

    • Dora Incontri

      Olá Valquíria, se você tivesse lido o texto todo, veria que eu falo nele que pessoas da minha equipe Pampédia estão presentes nas escolas e depois de escrever esse artigo, eu mesma também fui. E sim… é claro que estão fazendo um movimento pacífico!

    • Cláudia

      E você, Valquíria Alo, estava presente na cena?

    • Rogério

      De qualquer forma, creio que a análise feita pela Dora é mais em relação à reação das pessoas ao seu post no Facebook que à foto. Eu mesmo testemunhei comentários com frases soltas e superficiais, unindo o ódio partidário à completa falta de informação (e mesmo instrução e educação). Valquíria, vale a pena ler o texto completo, pois traz reflexões sobre a violência e o ódio daqueles que ainda não sabem “pensar” com o coração. =)

  • Rodrigo da Rosa

    Olá, Dora,
    Mais um belíssimo texto. A reflexão é fundamental mesmo e isso chama-se educação – muitíssimo refinada. Somente uma educadora com um olhar agudo como o seu poderia clarear a visão coletiva empanada pela cólera e vibrações desencontradas.
    Admiro seu pioneirismo no Brasil ao unir espiritualidade e consciência política. É fato que a maioria dos líderes espirituais se abstém desse campo humano que envolve disputas e poder, mas também a correta divisão do pão.
    Caloroso abraço

  • Nando Garcia

    Dora, sabedoria em suas palavras, pois nosso coração ás vezes pode nos trair e essas emoções e sentimentos podem nos abarcar, muitas vezes em meio a o turbilhão de acontecimentos, desejos de rugir e alterar nosso comportamento, mas isso de nada vale, perda de energias; as idéias são qual sementes, só vingam e se tornam plantas, frutos depois, quando chegam seu tempo, e podem ser colhidos, esses frutos, quando amadurecerem.

    Gratidão, paz e luz

    Nando Garcia

  • Juscelita Noetzold

    Dora, gratidão por compartilhar com palavras a sua compaixão. Bom fim de 2015 com esperança que todos os humanos acessem a evolução interior para externa-la em plena energia de não violência.

  • brunogalasse

    Obrigado pelo texto Dora. Os últimos acontecimentos nos têm testado a certeza da melhoria do mundo. Mas, com compaixão, paciência e sabedoria, poderemos ver para além do caos. Generosidade e trabalho incessante poderão descortinar novas sendas de transformação.

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