Diário da Mama 9 – A justa medida da potência

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Semanas se passaram e eu aqui sempre querendo voltar ao meu diário, mas estava sem forças. As químios vão se sobrepondo e o corpo vai ficando mais bombardeado, mais abatido, mais exaurido. A imunidade baixa, as infecções se sucedem e o desânimo toma conta. Já por duas vezes tive que adiar a data da infusão, por conta de infecções oportunistas. Faz parte. A boa notícia é que o tumor está diminuindo bastante.

Mas não é possível dizer que está tudo ótimo, porque não está. É estranho hoje como muitos só querem ouvir palavras de gratiluz e pensamentos positivos e não aguentam uma simples afirmação: não estou bem! Se ousamos dizer que está pesado, punk, difícil… logo aparecem aqueles encorajamentos de que vou vencer, de que vou ficar curada, de que vai passar. Está certo, a chance de cura é praticamente 100%, mas a travessia é penosa, para chegar lá.

É preciso saber ouvir que o outro está mal e simplesmente concordar que é difícil mesmo – só isso. Muitos fazem esse exercício de empatia e acolhimento, mas outros muitos não se adaptam à ideia de que há sofrimento e desfalecimento no caminho. Hoje, há uma tendência generalizada de se mascarar a dor, porque somos obrigados à felicidade diária nas redes sociais.

Entretanto, como toda dor traz aprendizagem, fico procurando extrair o que pode ser proveitoso nesse caminho, sem ideias punitivistas, que me façam procurar culpas presentes ou passadas para justificar o que estou enfrentando. A questão é o que se pode aprender. 

Acho que o que mais me martiriza nesse processo todo não é o mal-estar, as dores, a doença em si e o seu tratamento tão descompensador, mas o fato de me reduzir a energia, me paralisar as atividades do dia a dia, me sentir meia Dora ou um quarto de Dora e não a Dora inteira, com toda a potência que me é própria. Tenho que usar minha potência para me cuidar e superar o momento e não para produzir como estou acostumada, cuidar dos outros, como sempre cuido – apesar de não estar totalmente sem produção e sem ação.

E aí que entram as reflexões desses tempos. Lembro sempre de uma frase do meu mestre e amigo Herculano Pires, de que não devemos ter complexo de Deus. Estava ele se referindo a um dos atributos de Deus, que é a onipotência. Ora, muitas vezes, gostaríamos, sim, de ser onipotentes: arrancar o sofrimento dos mais amados, impedir as escolhas equivocadas de outros, consertar os problemas do mundo, trabalhar além dos limites humanos, num tempo sem tempo…E como não somos onipotentes, sentimos o gosto da impotência, frustrante, entristecedora.

Embora não sejamos onipotentes, somos sim potentes. Não podemos pretender a onipotência divina,  mas Jesus também disse que somos deuses. Ou seja, somos capazes de iluminar o caminho e criarmos beleza, amor e transformação. 

Eis o que é preciso, pois –  um meio caminho entre a sensação de impotência, que nos impede de avançar e a pretensão à onipotência, que nos esmaga por dentro.

Integrar-se na harmonia da vida, fazendo o que devemos, o que queremos, o que podemos, com inteira presença. E entregando a Deus Pai e Mãe, o conjunto da obra, a visão do futuro, a medida da eternidade, renunciando à vontade de controle. Uma diminuição necessária da ansiedade. 

Agir, parar, respirar, prosseguir, com calma e esperança, paciência e consistência. Doenças podem ser essas pausas necessárias e também podem ser consequência de um excesso de ação exaustiva. Mas também são simples contingências de um mundo cheio de venenos para o corpo e para a mente, numa estrutura social em que contrariamos o tempo todo nossa natureza orgânica e espiritual. A incidência absurda de câncer no mundo demonstra que estamos doentes coletivamente e isso se materializa em nossos corpos. 

E hoje, vou pegar uma poesia emprestada, da minha querida amiga Larissa Blanco – aliás ainda inédita, onde ela fala justamente desse mundo que queremos, em que não seja preciso mais sequer haver domingos. 

Aos domingos 

Quando um poema se abre: paragens

Tornam-se rarefeitas as fronteiras 

Entre o azul e o corpo

E a consciência nos oferta acolhida: 

Parecem corretas e nobres 

As nossas escolhas de vida. 

É neste instante 

Que despenca do meu semblante 

O fruto amargo,

Meu olhar opaco 

De quem muito conjectura

Finalmente descansa, desfruta 

E não mais censuro o avanço da cerca viva…

E dou-me conta do torpor que sinto

Ao ver o ser amado despido…

E lufadas de ar decolam do manjericão 

E transitam… 

Suavemente fecho os olhos 

– desisto de disputar com o Sol 

a minha retina –

E meus versos se põem a animar uma cena:

Os contornos de uma mulher que amamenta, serena. 

Imersa com sua prole 

Em um casulo de seda

Sob o teto morno de uma casa

Há pão sobre a mesa 

E uma aldeia espalhada pela sala. 

O futuro está abrigado 

Contra salteadores

Não há demandas para punhos cerrados

Não há extermínio dos mais fracos 

Nem sequer existem os domingos

Para cavar uma paragem

E garantir algum fôlego:

A vida já nasceu arejada,

Um poema pronto.

Larissa Blanco


5 respostas para “Diário da Mama 9 – A justa medida da potência

  • MARIA DE FATIMA SALUM MOREIRA

    Obrigada por compartilhar e nos fazer refletir sobre seus aprendizados no contexto de vida em que se encontra agora, Dora.

  • Luiz Carlos Altieri

    Bom dia Dora. Acabo de ler seu relato neste domingo dia 21. Fico triste em ainda não poder ler que essa passagem de tua vida ainda não passou. Só posso imaginar o quão difícil é passar por estas adversidades. Mas pode ter certeza que dedico meu pensamento positivo e meu sentimento de carinho sempre. Um beijo.

  • Magdalena

    Querida Dora, desabafe, fale sobre este companheiro indesejável, isso ajuda a aliviar um pouco tanto desconforto .E não deixe de confiar que tudo passa e isso também vai passar . Estamos contigo, mesmo a distância, emanando forças.
    Beijos

  • Aurea

    Dora, hoje quero enviar um abraço repleto de amor, que você possa se sentir abraçada pois tem momentos que nenhuma palavra faz sentido.🌻🥰

  • Alex

    Abraço fraterno, Dora. Com os renovados votos de que Nossa Senhora, a Mãe do céu continue a te amparar!

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