Consegui assistir ao aclamado filme Avatar somente em casa, depois que já havia saído dos cinemas e estava disponível nas locadoras. Portanto, não peguei a imagem 3D e não degustei aquele mundo paradisíaco de uma maneira mais integrada… mas isso não invalida a minha apreciação do roteiro e da mensagem final do filme.
Os comentários positivos foram tantos e minha paixão por science fiction é tão grande, que me pus a ver o filme com grande ânsia e expectativa por algo realmente maravilhoso.
De fato, há duas coisas excelentes: a beleza das imagens (que em 3D devem ser de tirar o fôlego) e a função que toda boa ficção científica exerce, que é a de criar uma situação imaginária, no futuro ou em outros mundos, mas através da qual podemos fazer uma leitura crítica da nossa realidade e do nosso mundo.
É por demais óbvia a relação que podemos estabelecer no filme com todos os imperialismos, os massacres étnicos, as agressões ecológicas, que vivenciamos no planeta desde que o mundo é mundo – mas com maior requinte, desde que se instalou o capitalismo como mola propulsora das ações dos grandes impérios. Afinal, atrás de toda a trama do filme está uma empresa que quer explorar um minério preciosíssimo que há no subsolo de Pandora, o habitat dos homens azuis. Podemos substituir esse minério Unobtainium, em diversos momentos dos últimos quinhentos anos de história terrestre, seja por ouro, esmeraldas, marfim ou petróleo e temos um enredo igualzinho ao do Avatar, onde não faltam nem mesmo os europeus conquistadores se apaixonando por indígenas colonizadas, como o caso de Pocahontas e nem os representantes dos impérios que se converterem para o lado dos conquistados e ajudaram na luta de resistência – situação retratada no filme A Missão (para ficarmos no campo cinematográfico).
Entretanto, o filme é feito dentro do próprio sistema que pretende criticar. E a ideologia central do sistema permanece como bandeira do filme. Que ideologia é essa? Que a violência é o única solução para todos os embates humanos. Que violência se contra-ataca com violência e a própria justiça só se cumpre com violência. Ou seja, trata-se de ideologia anti-cristã, pois Jesus ensinou a pagar o mal com o bem e a perdoar setenta vezes sete e a oferecer a outra face.
O filme quer se fazer politicamente correto – propõe-se a defender o indígena contra o invasor; a natureza contra seus agressores, a sobrevivência das culturas locais contra o massacre imperialista… mas da primeira cena tocante em que a nativa Neytiri pede desculpas ao animal por tê-lo matado e diz ao americano travestido de extraterrestre azul que aquilo era muito triste, vamos sendo conduzidos por um caminho de emoções que, no final, nós mesmos entraríamos no filme e estrangularíamos o Coronel Miles Quaritch.
Estamos aí longe de um episódio de ficção científica da antiga série televisiva Jornada nas Estrelas (Star Trek) – e essa sim, em muitos enredos, pacifista. Esta história se chamava Errand of Mercy. Os klingons (os vilões militaristas, guerreiros e imperialistas) haviam invadido um planeta pacífico e aparentemente estagnado numa cultura simples e agrícola. James Kirk, ao lado de Spock e da tripulação da Enterprise (representando quem sabe, a ideologia de “campeões da liberdade” dos Estados Unidos) põe-se em defesa do planeta e, embora não estejam inclinados a usar de violência, não encontram outro recurso. Mas quando klingons e representantes da Federação estão a ponto de iniciar uma guerra, eles se vêem impedidos disso. As armas esquentam a um ponto que eles são obrigados a soltá-las, os aparelhos das naves ficam inativos… Então, os anciões do planeta se apresentam como realmente eram – espíritos puros, de luz, que usavam aquelas vestes carnais apenas para recepcionarem os visitantes. Eles pararam a guerra com seu poder mental. Os klingons na verdade não tinham poder nenhum sobre eles e ao matarem os habitantes não estavam realmente matando, porque eles estavam em outra dimensão.
Cito esse episódio porque isso sim é pensar diferente, raciocinar em outros termos e poder sair do ciclo de violência extrema em que vivemos neste mundo.
Enquanto todos se deleitarem com as cenas de violência de que o filme Avatar está cheio, supondo que para combater a violência e a injustiça, não há outro remédio senão a violência, não sairemos jamais desse diapasão na Terra.
Quando vi as cenas de Pandora, no trailer do filme, pensei que fôssemos fazer uma viagem para um reino de paz e beleza e pudéssemos usar a mente em outras alternativas de existência, mas na verdade o filme excita os que gostam de armas pesadas e de tecnologia para matar e acende nossos instintos primitivos de querermos vingança dos matadores. Ou seja, afinal, quem é o herói do filme? Quem sobrevive e é exaltado? O jovem Jake – que é um guerreiro! Ou seja, transferimos o faroeste para o espaço e agora vamos defender os índios… mas ainda o herói é o colonizador guerreiro!
Enquanto não fizermos filmes em que os heróis sejam modelos como de Jesus, Buda ou Gandhi, não podemos fazer um educação estética e ética para as novas gerações em que o bem (pacífico) vença afinal. O cinema americano, como a própria ideologia do sistema vigente no mundo, é essencialmente anti-cristão, embora se afirmem cristãos nominalmente. Porque a essência da mensagem de Jesus, como muito bem compreendeu Gandhi, um hindu, é a não-violência.
A grande questão que se põe é a seguinte: o que no limite fazer com um homem como o coronel do filme, que tem prazer em matar e não tem um pingo de compaixão? Haverá outra alternativa senão eliminá-lo? Justamente isso é que o filme nos faz acreditar e que toda ideologia maniqueísta usada hoje em dia nos faz crer: que há homens inumanos e que só nos resta varrê-los da terra. Se considerarmos porém, numa outra visão, que todos os seres humanos têm um lado humano, que pode ser tocado – em termos de ficção científica, todo Darth Vader na verdade é um menino desviado, pela revolta, mas pode ser tocado pelo amor de um filho ou de alguém…, então as tramas se tornariam mais ricas, menos “râmbicas”… aliás, não é à toa que Cameron – diretor de Avatar, também esteve envolvido na produção do Rambo (modelo máximo dessa ética do faroeste!).
Isso está ligado a um outro aspecto do filme: a espiritualidade. Muitas pessoas me disseram que a espiritualidade estava fortemente presente em Avatar. De fato, o próprio nome Avatar vem do hinduísmo e que dizer “encarnação de um ser divino”. A transferência de espíritos de um corpo humano para o corpo Na’vi sugere a independência da alma em relação à matéria. As orações, o culto à grande mãe – tudo isso lembra as religiões pagãs, em que sacerdotizas exerciam o culto da terra-mãe, de Deusas maternas. No Egito, entre os celtas e muitos povos da Antigüidade, isso era comum. E existe uma volta ao neo-paganismo no mundo pós-moderno.
Isso demonstra uma característica muito patente em nosso milênio – voltamos a toda sorte de espiritualidade e aceitação do sagrado e muitas vezes ao que era pré-cristão. Mas a essência ética da mensagem de Jesus e, nesse caso, também de Buda – a da não-violência – não é invocada. Ou seja, estamos numa posição muito cômoda, que é a que aparece no filme O Gladiador, aceitamos todas as formas de espiritualidade, mas olvidamos a que alimenta a nossa tradição ocidental, com sua proposta radical de perdão, paz e não-violência. No filme O Gladiador, passado em torno do ano 200, época em que os cristãos morriam às pencas nas arenas romanas e morriam cantando, perdoando seus algozes, eles não são sequer mencionados, porque o grande herói é um guerreiro que passa o filme inteiro para executar a sua vingança e não há a voz de um cristão para lhe dizer: perdoe!
Essas são as reflexões nascidas do filme Avatar. Esperemos que outros possam pensar críticas nesse sentido, para começarmos a escapar da hipnose da ideologia dominante.
3 novembro, 2011 at 5:53 pm
Interessante a crítica.
Essa ideologia é repetida desde a idéia da pax romana: si vis pacem, para bellum. Se queres a paz, prepare-se para a guerra.
É o desafio de se pensar novas formas de resolução dos conflitos.
Att.
Raphael
31 maio, 2016 at 12:15 am
Uma vez mais, Dora, você consegue traduzir em sua crítica ao filme Avatar, algo que me incomodava depois de tê-lo visto, mas não sabia bem o que era. Parabéns! Concordo com Raphael: “o desafio é pensar novas formas de resolução de dos conflitos.” E acrescento, não só pensar, mas querer, persistentemente, essas novas formas, para além do mais fácil e rápido.
Abraços!
Marilda