A música está em desuso no mundo atual, pois o que se ouve em geral é um arremedo de música, imposto pela mídia, mercadejado por gravadoras que desejam lucro fácil e rápido. O povo está deseducado para o ouvir. Sertanojo, funk, pagodão e outros tons empobrecidos poluem aos ouvidos. A maioria dos jovens desconhece que somos a terra de Caymmi e Tom Jobim. Mozart e Beethoven, nem pensar. A não ser que alguma canção daqueles (como foi Pela luz dos olhos teus de Jobim) vire tema de novela da Globo. Então, salva-se algo da ignorância e do esquecimento.
Entretanto, a música não é um apetrecho postiço na vida humana, é respiro vital da alma, é canal de expressão de sentimento e sensibilidade, sem o qual o espírito se embota e perde em altura cultural e espiritual. A música é patrimônio de um povo, da humanidade toda e precisa ser passada, reconhecida, cultivada para as novas gerações, sob pena de regressarmos à barbárie.
Mas é preciso saber apreciar o que é bom, o que tem complexidade harmônica, ritmo rico, poesia bem feita… e só se pode aprender isso através da educação. Por isso é inconcebível uma escola sem música.
Assim, é digno de celebração o fato de que a partir desse ano de 2011, as escolas públicas brasileiras estão obrigadas a inserir a música em seu currículo, pela lei nº 11.769, de 2008, sancionada pelo presidente Lula (eis uma coisa bem feita por ele).
A música deveria entrar pela porta da frente da escola e ocupar um lugar de destaque e não ser entendida como um detalhe postiço do currículo.
Como acreditamos numa educação interdisciplinar, que mexa simultaneamente com todas as áreas do conhecimento, toque ao mesmo tempo todos os sentidos e desperte o interesse de crianças com diferentes tipos de inteligência e vocação – a música ocupa aí um lugar central, pois ela pode ser o ponto de partida e o ponto de chegada de um bom projeto interdisciplinar.
A música pode ser o eixo de congregação e intercâmbio de toda a escola, em corais, recitais, concertos, bailados… mas não essa coisa morna de dançazinhas ensaiadas e comandadas por professoras de má vontade, para pais e mães tirarem fotinhos (como são as festas juninas, as festas das nações e que tais!). É preciso professores que tenham cultura musical, que saibam quem é Pixinguinha e Louis Armstrong, Bach e Villa-Lobos. Que saibam como levar isso para as crianças, mostrando um trecho da Flauta Mágica de Mozart, um Singing in the Rain com Gene Kelly ou o velho Caymmi cantando Minha Jangada vai sair pro mar. Há métodos próprios para introduzir as crianças no que é bom e belo. Deve ser feito em doses homeopáticas, com as canções mais acessíveis. Não devemos começar a mostrar o que é ópera com um Richard Wagner ou introduzir música orquestral com uma peça atonal. Mas também não se deve vulgarizar e mostrar clássicos com ritmo de rock ou a Rainha da Noite com Edson Cordeiro.
Sensibilidade, sutileza, sensatez e bom gosto – eis o que é desejável, para que a criança entre no mundo da boa música, com gosto e prazer, e queira mais. O objetivo dessa introdução da música na escola não é que todos saiam músicos (embora é bom que se descubram e se incentivem os talentos), mas que todos se tornem apreciadores da música, sensíveis, cultos e com isso dilatem a alma, sejam mais criativos e tenham um recanto de canto onde repousar.
Em outros países do mundo, na Europa e nos Estados Unidos, há uma cultura de se cantar em conjunto. Quase todo mundo na vida já participou de algum coral e quando se juntam amigos e famílias, canta-se e canta-se afinado. Isso faz bem ao espírito. Apesar de sermos um povo tão criativo e musical, perdemos essa dimensão, acachapados pela incultura da televisão, que não só tirou das famílias a conversa, mas também a música. Desliguemos a rede Globo e ouçamos música em casa. Cumpramos a lei e coloquemos música na escola e vai haver uma melhora geral na inteligência, na cultura, uma queda de violência e uma elevação dos espíritos.
* * * * * *
Abaixo um exemplo de algo delicado: uma Lied de Mozart, para crianças, de que fiz uma versão para o português. (Lied significa canção em alemão; é um gênero musical erudito geralmente para voz e piano, feito com poemas tirados da literatura, onde canto e instrumento interagem de maneira rica. O piano não é mero acompanhamento da voz, mas entretece a música junto com a linha melódica feita pela canto.)
SAUDADES DA PRIMAVERA
Vem logo, primavera
e traz um novo frescor!
E faz brotar na terra
perfumes, cores e flor!
Eu quero olhar de mansinho
miosótis e manacás
e ver pelo caminho
a relva bordada de paz!
Verdade é que na terra
em que por bem eu nasci
eterna primavera
vigora e brilha aqui!
Mas quando foge o inverno
Assopram ares tão bons!
Setembro amigo e terno
traz novas nuanças e tons!
Música: Wolfgang Amadeus Mozart • Versão para o português: Dora Incontri • Arranjo: Luciano Vazzoler & Moacyr Camargo• Voz: Dora Incontri • Piano: Luciano Vazzoler • Vozes das crianças: Beatriz Gross Barboza, Julia Fidelis Oriola, Letícia Barbosa Magalhães, Luísa Carvalho Grossi de Almeida e Paola de Angelis • Regente do coro infantil: Bia de Luca
26 junho, 2011 at 9:31 pm
Dora,
Que prazer ter contato de novo com suas filosofias e idéias. Me lembra as aulas de Cultura. Estou empolgadíssima por ter encontrado a música da lua aqui! Ótimas lembranças.
Voltarei sempre, e como sempre, será uma aula. :}
Beijos
27 junho, 2011 at 12:23 am
Amei Dora, como tudo que você faz, você expõe sua alma, seu caráter justo e a cada mimo, uma aula. Não assisti Avatar justamente porque sabia da violência transmitida em forma de diversão, e me nego a compactuar com essa indústria suja e corrompida que está minando totalmente o caráter dos jovens e crianças do mundo. Infelizmente esses filmes são campeões de bilheteria e seduzem mentes incautas a crer que tudo se consegue com violência, quando todo mundo sabe que violência gera violência e que não se apaga incêndio com gasolina. Além de concordar com seu comentário sobre o filme, me deliciei com a música e as poesias. O pps sobre a criança me emocionou e já estou cheia de planos de como levar pra escola pros meus alunos assistirem. Vou ficar fã assídua do seu blog e aguardar ansiosamente cada novidade que você trouxer. Obrigada, querida, por você existir, tenho certeza que embora você não tenha destaque na mídia (que só dá valor às baixarias), certamente sua missão é das mais importantes nesse nosso planeta e agradeço a Deus ter tido a oportunidade de te conhecer e conviver com você daqui pra frente. As sementes que você tem plantado em nossos corações e mentes, vão dar frutos com certeza, a cem, a sessenta e a trinta por um, como na parábola.
Beijos. sábado estarei no plantão da monografia.
27 junho, 2011 at 9:52 am
Oi Dora!
É uma surpresa agradável para mim esse seu blog. Realmente, música é uma necessidade! E o cantar juntos que vc enfatiza falta muito em nossa vida atual. E qto. mais informal, melhor, embora também seja muito bom o cantar juntos na escola, nos centros religiosos, nas solenidades.
E vc fala da importância da música não como teórica, apenas, mas como alguém que a vive e pratica (e bem!).
Grande abraço!
27 junho, 2011 at 10:00 am
Me preocupa o fato de uma lei precisar impor o contato das crianças com a música nas escolas. Me pergunto se a iniciativa privada e pública saberão contratar os profissionais corretos, se montarão um programa que dê valor à arte. Será que os professores saberão fazê-lo? Conheço muitos que jamais ouviram Mozart, ou qualquer outro clássico. O que vemos hoje, desde os mais novos, e acompanho isso de perto com meus priminhos, é uma escola cada vez mais competitiva, as crianças precisam estudar à exaustão para serem aprovadas em todas as provas, alimentando o ciclo vicioso do sistema capitalista e sua lógica cruel.
Não aguento mais “sertanojo” (adorei isso… rs), funk, pagode e coisas do gênero, a mídia aboliu a poesia, querem nos vender um mundo sem cor, sem música, sem vida!
Sua reflexão sobre o Avatar de James Cameron é também interessantíssima, estamos tão acostumados com a violência do american way of life/kill que, inocentemente (ou não), a violência do Jake Sully também nos contagiou!
27 junho, 2011 at 11:42 am
OI, Dora! Estas orientações são luzes necessárias no mar revolto das mídias! Vou por no facebook para divulgar mais um tanto! BJS
28 junho, 2011 at 10:14 am
Obrigado, amiga Dora, por mais este teu contributo para a causa das crianças.
1 julho, 2011 at 11:15 am
Dora, quanto ensinamento… Suave em palavras e transcrições; intenso em poesia. Ler sobre grandes mestres tão acertadamente tratando o tema educação é maravilhoso. Meu Deus… Em que tempo os educadores deixaram de amar o que fazem? Hoje encontramos professores que dizem detestar a profissão e só esperam a hora da aposentadoria. Não conseguem lidar com as crianças, com os jovens, com o ser humano. O que nos falta?
Embora considere fazer parte de algum culto religioso algo importante para o crescimento espiritual , fico às vezes sem entender porque não se enfatiza mais sobre a educação completa para o crescimento como ser humano e como ser espiritual.
Ler de Comenius “…Nosso segundo desejo é que todo homem seja educado integralmente, formado corretamente, não num objeto particular ou em alguns objetos ou mesmo em muitos, mas em tudo o que aperfeiçoa a espécie humana; para que ele seja capaz de saber a verdade e não seja iludido pelo que é falso; para amar o bem e não ser seduzido pelo mal; para fazer o que deve ser feito e não permitir o que deve ser evitado; para falar sabiamente sobre tudo, com qualquer um, quando necessário e não ser estúpido em nenhum assunto e finalmente para lidar com as coisas, com os homens e com Deus, em todos os sentidos, racionalmente e não precipitadamente e assim nunca se afastando da meta da felicidade…”, me faz pensar que a religião deveria estar mais próxima da nossa condição humana temporária, diante da eternidade do espírito, mas imensa diante da necessidade de aprendizado para sairmos em algum tempo desta condição. Creio que a educação engrandece o espírito, concordo com os mestres. A educação plena, incluíndo aí algo importantíssimo como a música, por você, querida, tão bem defendida, é algo que só pode elevar o ser humano. O conhecimento traz a liberdade e nos insere no mundo, mas nos prepara para a eternidade… O conhecimento pleno, aliando a vida terrena à vida espiritual.
4 julho, 2011 at 3:22 pm
Bem legal a reflexão sobre a música, pelo menos a lei está exigindo que sejam músicos que deem as aulas as crianças, o que é bom, mas também é um grave problema pois os professores de música acabam, sendo músicos frustados que lecionam por não ter outra atividade profissional, e que é péssimo para a educação, como você mesmo sempre aponta.
E concordo que essa exposição em doses homeopáticas é a melhor maneira, tenho experiência em casa com a minha irmã menor rejeitando músicas mal-feitas, escolhando escutar Noel Rosa. Expondo a criança ao que é belo, ela mesma começa a buscar a Belo.
Tudo de bom
13 julho, 2011 at 6:19 pm
Que lindo!!
7 agosto, 2011 at 1:10 pm
Costumo levar clássicos para iniciar minhas aulas, como uma maneira de receber os alunos com boas vibrações, e também utilizamos no momento de escreverem seus memoriais, no fim do dia. No início eles reclamavam muito, ficavam inquietos, mas em algumas semanas já se afinizavam com a energia gerada. Hoje são poucos os que se incomodam e não sintonizam com aquela egrégora, mas já aprenderam a respeitá-la. É tudo uma questão de oportunidade, não se pode gostar do que não conhecemos, né?…